Foi estranho quando ouvi esse termo pela primeira vez, aqui mesmo no
bairro, ainda na década dourada.
Eu tinha um vizinho muito estranho,
como diriam hoje, um tanto que suspeito. Seu nome era Cojak, um careca de mais
ou menos 30 anos, uma boca enorme, olhos arregalados e pretos, magro, mas cheio
de músculos e um bigodinho de Clarck Gaibor. Armou sua barraca de lona preta no
terreno baldio ao lado de minha casa. Ele sobrevivia de catar sucatas, bagulho
e todo tipo de tranqueira. No quintal criava marrecos, patos, galinhas,
periquitos, e tinha dois cachorros pastor alemão que vigiavam suas relíquias.
Naquela época, toda semana passava o
homem do ferro velho e a molecada ficava muito feliz. Quando ouviam o barulho
dos sinos tocando lá longe, já procuravam um pedaço de papelão, ferro, lata,
garrafa de vidro e uma porção de coisas que possibilitavam a troca por doces e
pintinhos coloridos. Eram na cor azul, vermelho e amarelo.
A felicidade foi completa para os
Cavaleiros, quando o mascote da turma foi adquirido através das trocas. Ganhou
o nome de Bob. Um dia o coitado deu de entrar no terreno do Cojak. Os cachorros
eram bravos, e não pensaram duas vezes em atacar o indefeso Bob, que teve morte
rápida. Nosso amiguinho morreu de tarde e as crianças choraram muito.
Elaboramos um velório e o enterro. As meninas trouxeram flores, Carlitos fez o
caixão de madeira – era o Cavaleiro de mais habilidades com as mãos, talvez
fosse um grande escultor, marceneiro ou algo do tipo -. Cojak olhou para a
gente e sorriu, sentimos medo e corremos. Ele não era bem-vindo. Nossos pais
falavam que ele era louco, para nunca nos meter com ele.
Num sábado de agosto, amanhecemos com uma notícia explosiva. Os
pés-de-pato invadiram uma casa do bairro, lá havia maconheiros usando drogas e
alguns inocentes, que moravam na casa ao lado (moravam de favor, chegados a
pouco da Bahia). Ninguém teve perdão, todos foram fuzilados. A chacina deixou
nove mortos, foi uma coisa horrível. Alguns se esconderam debaixo do tanque,
outro estava dormindo no sofá, todos levaram tiro e tudo aconteceu de
madrugada, mas dois carinhas conseguiram fugir, e na correria de pular o muro
para salvar-se, um quebrou a perna. No dia seguinte, muitos repórteres e todas
as redes de tevê, a molecada fazia de tudo para aparecer, sorrindo e dando
tchau para as câmeras, aparecemos no Jornal Nacional. Nenhuma daquelas crianças
havia visto coisa igual, tanta gente morta, alguns pensavam que era filme, só
que para um filme tinha muito sangue, mas o mais importante para os menores, o
bom de tudo, foi aparecer em todos os canais. O louco do Cojak quis reciclar o
sofá ensangüentado e trouxe para a frente da janela do meu quarto, a imagem dos
caras mortos não me saía da cabeça e com a desculpa de proteger os manos, dormi
por duas semanas na cama com eles.
Acabei de perceber que fugi do assunto,
e você deve estar se perguntando o que pintinhos e chacina têm a ver com crime
passional. E eu vou lhe responder com todas as palavras: nada. Só relembrei os
fatos e resolvi contar, se passaram na mesma época, e você deve saber que uma
lembrança puxa a outra, e vá se preparando, ainda lerá muitas lembranças
perdidas no tempo, mas não se preocupe, será uma leitura diferente.
Cojak era um exilado, desprezado pela
vizinhança, alguns diziam que ele era um assassino, outros um assaltante, mas a
verdade só ele sabia, talvez a Jana soubesse também.
A bela jovem alta, de cabelos longos e
repicados, uma linda morena que morava havia pouco, de aluguel, no bairro com
seu marido. Era a Jana, esposa do Torneirinha, sujeito alto e magrelo. Que
apelido ridículo esse, mas não cabe agora tentar explicar o porquê dessa
tolice. Ficou curioso, não é caro leitor? Eu também ficaria no seu lugar, e em
nome dessa curiosidade que castiga qualquer um, contarei, mas aviso que é
bobagem mesmo. Você deve conhecer um cara tipo cachorro, daqueles que só usam o
poste como urinol ou a primeira árvore que encontra. O Torneirinha era assim, e
quando começava, parecia que ia secar o corpo, não tinha um que não ria e em
seguida o chamava de torneira. O diminutivo era para ficar mais “carinhoso”.
Cojak se tornou o melhor amigo do casal, praticamente morava na casa
deles, principalmente quando o Torneirinha não estava. A vizinhança comentava,
a fofoca corria solta na boca das senhoras do bairro, e o coitado fazia papel
de bobo, até os velhos da rua riam por trás. Mas alguém queria despertar a ira
do Torneirinha, jogar na cara a possível
traição de Jana. Quem foi? Bem, disso não tenho certeza, uma carta anônima caiu
como bomba nas mãos do Torneirinha. Ouvi quando os pneus do carro cantaram e o
Torneirinha é quem estava no volante, todos já previam o futuro, Cojak entrou
no carro de olhos arregalados e sua careca brilhava como nunca, sua regata
deixava à mostra as tatuagens que pulavam de seu corpo, o cheiro de sangue
começava a brotar no ar. Depois de uma semana, reaparece Cojak, Jana devolveu a
casa e sumiu no mundo com ele, e do coitado Torneirinha não tivemos mais
notícias.
Passaram-se
cerca de seis meses, quando ouvimos no telejornal uma reportagem:
“Jovem é
assassinada, seu carro jogado num rio”.
A manchete era forte, Cojak se
declarava culpado e dizia com sua voz rouca:
- Matei por
amor, ela precisava morrer para purificar a alma, a morte foi mandada por Deus,
ninguém deve fugir do destino.
Quase foi linchado. Também, depois
daquele depoimento! O cara devia estar louco mesmo, pegou vinte anos, e depois
foi declarado suspeito da morte de Torneirinha.
Fala aí,
leitor! Sinistro esse amor bandido, não é? Cada história... Hoje vemos
tranqüilidade no bairro quando há no máximo uma morte semanal. Esse foi o mais
famoso caso de crime passional que conhecemos.
Depois de um crime passional, caro
leitor, que tal virar a página e procurar algo menos mórbido?