sábado, 29 de novembro de 2008

Cheiro de lembranças

A vida devia mesmo ter trilha sonora. A minha, neste momento, seria um misto de passado e presente tentando inventar o futuro. Hoje é um dia lindo, cheio de nuvens no céu que servem como filtro da luz que ilumina está manhã silenciosa na periferia do Rosa. Quem não gosta das nuvens no céu é porque não viu sua brincadeira de mostrar que raios de luz podem ser mágicos e quantas formas impossíveis tornam-se quase palpáveis, se não fosse a distância das nuvens, é claro. Elas chegam em desenhos, não sei ainda se eu com minha imaginação fértil crio cada elemento ou simplesmente o puro dom da natureza, do branco mais radiante ao cinza escuro, eles passam espremidos e é como se fugissem do algodão denso.


Umas luzes ainda tímidas brotavam do céu, naqueles dias em que a vida era simplesmente explorar alguns metros quadrados de quintal e imaginar o que faria depois. Tomei um banho rápido, joguei a mochila preta nas costas e fui para o centro da cidade.

A diversidade incrível de pessoas e objetos cruzava meu caminho. Era o mundo jogado pelas calçadas; filosofias, idéias simples, desejos com chamas apagadas, uma pobreza que dividia espaço com a riqueza. Bem, leitor, era isso que eu enxergava no centrão velho, em cada rosto pobre uma história, em cada rosto rico, uma sacanagem com o próximo, bem próximo dele. (Tudo bem, leitor, não é em cada, e sim em alguns rostos ricos).


Entrei numa loja de discos velhos na rua Augusta e mergulhei no túnel em direção ao passado que ficou bem distante de mim.
As músicas antigas faziam fundo musical, as pessoas que entravam na loja também pareciam diferentes. Sentia que todos que ali entravam buscavam algo perdido, ou que ainda nem encontraram. As capas de discos traziam lembranças para o louco Cassiano. Lembrei da única foto que meu pai deixou, de cabelo black power, uma calça cor-de-rosa boca de sino, (nossa quem usaria isso hoje?), camisa de lapela grande na cor salmão e bordada, um sapato preto de plataforma, olhos verdes arregalados, um sorriso espalhafatoso, acredito que ele sentia-se o próprio John Travolta nos embalos de sábado à noite! Essa foto ele deu de presente para minha mãe, provavelmente quando eram namorados. Bateu-me uma saudade estranha que não é costumeira, aliás, geralmente esqueço que tenho pai. As fotos dos artistas da época...

Meu pai tinha cara de artista, às vezes me pergunto se foi dele que puxei essa veia poética, pois da mãe sei que não é. Ela é muito seca, dura na queda, acho que a vida a deixou muito amarga e triste. Talvez o pai fosse metido a poeta, talvez escrevesse poesias, e dedicava letras de músicas para ela, e trazia todo o romantismo que uma moça na idade dela desejaria na vida. Não sei, ela nunca me contou sua história, não sei nada de seu passado, mas a verdade é que ela não suporta me ver escrevendo!

Os artistas eram mais alegres em suas apresentações, e parecia que suas inspirações eram mais criativas, um tanto que chorões, pois você, leitor, há de convir comigo que dor de cotovelo era o ponto forte de todos os compositores; amores, dissabores, tem sempre aquele que perdeu a namorada, que foi chifrado pelo melhor amigo, que tem um amor proibido. Ô raça pra ter desgraça amorosa! Ultimamente a desgraça tem outras raízes!

Saí da loja ainda meio que nas nuvens, vi o anúncio de uma peça musical no teatro do Sesi (ahaha, gratuita, amigos) e não hesitei em entrar. O teatro é algo que também me seduz, a forma como o ser humano serve de matéria-prima para o trabalho dos atores, um mundo de fantasia, verdades e mentiras, onde somos capazes de rir dos próprios problemas e nem mesmo nos dar conta que somos os protagonistas da tragédia encenada. Eu assisto aos espetáculos e tento entender onde posso mudar ou qual porta posso abrir em minha vida. Reclamo, como todos, do quanto é difícil, mas o importante é que minha cabeça muda e minha mente parece evoluir. Depois, fui a um lugar que você, leitor, não vai acreditar, é quase impossível de me imaginar lá, aliás, nem eu acredito que consegui entrar depois de tanto tempo, um imã me puxou, vai amigo, primeira tentativa... Nãooo, outra... Também não! Palhaçada, hein! E põe palhaçada nessa história, já deu pra sacar? Ainda não? Tá bom, não é tão fácil assim! O Circo! Puxa vida, eu fui!

Primeira atração: o mágico, a mentira, a ilusão, a magia. O engraçado do mágico é que você sempre espera que ele o surpreenda, que invente um truque novo, algo que você nunca viu em nenhum outro lugar, é uma vontade superior a você mesmo, mas...! Não dá outra, ele repete os truques.

O mundo é um circo, e para começar monta-se a tenda. Quem? Não darei respostas mastigadas, vamos lá, caro leitor, raciocinemos juntos (ou ao menos tentemos). O mágico, bem, acredito que é o presidente. Cada país monta sua pequena lona com seu ilusionista, é meio engraçado, mas cada gesto do mágico lembra o presidente, simplificando, todos políticos, tirou o coelho da cartola, essa é a mais velha, o que te lembra isso?

Vai pensando, talvez eu dê minha opinião depois. Enganar a platéia parece tão fácil nos primeiros momentos, concorda, querido Oz? A cada truque novo, um sorriso espantoso, a platéia enjoa, mas não desiste de descobrir os métodos ou de ver o próximo número.

Senhoras e senhores, o poderoso leão será domado pelo valente Pedro, o domador das feras, o que te lembra essa cena? Pobre domador! Pobre é do leão; coitado, oprimido, já derrotado por estar ali, faz pose de valente mesmo depois de ter sido capturado, urrando para que todos sintam medo, mesmo que depois volte para a jaula e chore por ter perdido sua história e sua família selvagem!

Somos de fato o público, uma platéia que ri da desgraça alheia, que não faz nada para mudar o quadro vivenciado e, pior, ainda aplaude as atrações!
A equilibrista está no papel de uma mãe de família, que precisa passar num fio de pouca espessura para dificultar e glorificar sua cena. Uma mãe economizando um mês inteiro para que seu salário mixo dê para pagar o aluguel, as contas, água, luz, gás, pôr comida para a família, verba para o material escolar dos moleques e tudo mais que aparece no percurso para assim vencer a corda bamba, mês após mês.

OH! Lá vêm os palhaços, fazendo piada, palhaçadas, brincadeiras para a platéia sorrir. Nós também somos os palhaços da história no grande circo da vida, rimos de nossas desgraças e fazemos os outros rirem de nossos dramas pessoais e comuns, a plebe!

Estamos sempre ali na arena, sem fugir da regra (deixando claro, meu caríssimo leitor, que há o provérbio “para toda regra existe sua exceção”).


Os palhaços são significativos, se escondem através de maquiagem e roupas coloridas. Certa vez, ouvi a história de um palhaço muito famoso nos circos que montavam arena na região. Era o palhaço mais engraçado de todos e também o mais infeliz, incapaz até de sorrir quando tirava a roupa de show; ele sofria calado, o desespero tomava conta de seu inconsciente, mas ele não deixava que seu corpo se abatesse, mesmo que sua mente passasse as noites em claro, impossibilitando o desejado descanso que todo mortal merece. Ele fazia com que seus delírios virassem poesias dramáticas que mais tarde foram descobertas e tornadas públicas junto com a história do palhaço Cascateiro, isso, é claro, após sua morte por excesso de calmantes!!! Desde então, sempre vejo uma lágrima nos olhos de cada palhaço que cruza meu caminho.

Olhar profundamente tentando enxergar a alma dos circenses parece uma experiência totalmente inusitada e construtiva, vendo como tudo em nossa vida está representado em diversas coisas ao nosso redor. Essa ida ao circo me fez ver e entender muitas coisas. Agora, quando você, leitor, for ao circo novamente, tente ter uma nova visão.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Imagens de uma triste lembrança

O enterro

Todos os amigos, conhecidos e curiosos seguiram em cortejo, a última despedida de nosso amigo. As minas com flores nas mãos, os amigos tentaram evitar as lágrimas, mas a revolta estava nos olhos de cada presente, um ódio que tinha em sua raiz o desejo de descontar na mesma moeda a grande perda.

O caixão desceu, as flores o cobriram, a terra foi jogada aos poucos, a cruz colocada, o cemitério era o tal São Luiz, conhecido por todos em todas as periferias do lado sul, quantos mortos, tantos inocentes, culpados, indigentes, São Luiz periférico, fim de todos!

A noite é uma visão horripilante no tal lugar, as pessoas são enterradas o tempo todo, já vi defunto de olho arregalado no caixão, defunto suando, mas o terrível para mim é o tal algodão no nariz, já tive uma porção de pesadelos com tudo isso. O paredão de ossos com todas aquelas fotos de crianças, jovens, adultos e velhos de todas as épocas registrados em três por quatro, o formato da maioria, uma imagem de morte e de pesadelo!


O tempo passa, a solidão da alma queima meu corpo, ainda não acredito em tudo o que aconteceu, parece impossível, aquele tal destino que parece rir de nossa cara, brincando com nossos sonhos que não acontecem e ainda colocando buracos no caminho.

Será que destino existe mesmo? Será que ele é tão cruel como parece? Prefiro não crer nisso. Certas coisas são impossíveis de apagar, e lamentar não adianta, martirizar-se, não há por quê! O melhor é virar mais essa página vermelha de minha vida e seguir em frente meu caminho. Contar a todos o que aconteceu, para que pessoas importantes, além de não serem esquecidas também sejam lembradas, como orvalhos que fizeram a diferença para alguém e serviram como exemplos de tristes histórias.

Sei que ainda encontrarei muita coisa ruim em meu caminho e, pior, ainda terei que enfrentar tudo de frente! Que os céus me ajudem!

domingo, 9 de novembro de 2008

Descobrindo as lágrimas

O valor da amizade:

As crianças cresceram, viraram jovens com destinos complicados e diferentes. Jogávamos bola na rua, já decidindo a turma, montavam o time dos sem-camisa e dos com-camisa. Como era fácil se divertir, um dia era sempre melhor que o anterior.
Quando a chuva caía, era festa prometida, correr com os amigos pulando poça d’água, tocando campainha das casas da rua de cima. Era emocionante soltar aquele grito com toda a força que se tinha nos pulmões, beber as gotas que caíam do céu, fazer de conta que éramos os donos da rua. O Lê era o meu melhor amigo, sempre estávamos juntos, mas ele não podia ouvir um trovão, o medo se expressava no olhar. Mesmo assim ele engolia calado, todo aquele medo era por causa do Biel, irmão dele, morreu com um raio. Caía uma tempestade, ele correu muito, mas não conseguiu chegar em casa, resolveu parar debaixo de uma árvore para se esconder, esse foi seu erro, foi uma morte feia, e traumatizou o Lê.

Depois da chuva íamos para o clubinho, foi o Gil quem construiu, era de madeira, e ficava no campinho. Contávamos estórias de terror, piada, e uma pá de mentira, o Gil era o campeão, ele fingia que era verdade, e a gente fingia que acreditava, tínhamos entre nove e dez anos, bem espertos, alguns já com a malícia de quem estava perto da adolescência, outros só mentirosos, com tanta fantasia que mal cabia na cabeça. O mais inocente era o Lê, acreditava em tudo, não falava palavrão, nem para ofender a mãe dos outros na hora das brigas, quando a gente mais usava os piores. Ele tinha medo de apanhar em casa, tinha pesadelo com o irmão e acreditava em Papai Noel, mas nunca ganhou nenhum presente, a não ser daqueles palhaços que se fantasiavam na escola, e muito mal por sinal, davam carrinho de plástico, que cortávamos com faca para abrir as portas, e ele dizia:

- São os ajudantes do Papai Noel, ele é muito ocupado.

Foi a época mais divertida da minha vida, deixou boas lembranças, bolinha de gude, taco (hoje sei que é uma espécie de beisebol brasileiro, com quatro pessoas), esconde-esconde, queimada, futebol de botão(tinha até campeonato com os manos das outras ruas, com direito a torcida das irmãs), carrinho de rolimã, mamãe da rua, duro ou mole, rouba bandeira, alerta e tantas outras brincadeiras, até fazenda de vaquinha feita de chuchu e batatinha a gente tinha. Mas com a idade, o mundo dos homens foi chegando, de repente uma dessas crianças poderia ser o nóia da avenida.

Viramos homens, e o Lê não é mais o menino com medo de raios e trovões, aliás, tem medo de pouca coisa, graças ao padrasto, descobriu que Papai Noel não existe. Não tem medo de encarar as pessoas, seja quem for ela. Esse é um erro mortal no mundinho.

Era sexta-feira, ele encostou-se ao muro da escola, quando viu o namorado da ex-namorada do outro lado da rua, e não deixou de encarar o mano, que veio tirar satisfação na mesma hora.
- Tá me encarando por quê? Ta me achando com cara de veado ou desistiu da vida?
- Sai fora, cara, não estou te encarando!

O Lê se sentiu humilhado, o mano tirou e zoou ele no meio da galera.
Depois da tiração, o mano falou que o assunto deveria ser esquecido, mas Lê estava muito puto e disse:
- Isso não vai ficar assim, Fido, qualquer hora a gente se tromba, e resolve essa parada!

Eles ficaram com o assunto guardado, pois mano inteligente não esquece treta perigosa, tenta logo resolver de uma forma ou de outra.
Malditas palavras foram as do Lê. Duas semanas depois, sentou-se na escada da banca de jornal do PC no ponto final e começou a escrever, foram poucas palavras, talvez uma letra de rap, um poema, ou só um desejo. A Nay passou e ele disse:

- Morena, você não anda, desfila.

Ela abriu um sorriso e entrou na escola, ele colocou a caneta na mão esquerda e parou para pensar. Fido chegou, deu poucas palavras e cinco tiros. Meu mano Lê morreu de olhos abertos e a caneta na mão, dois tiros foi no rosto. Nay ouviu os tiros e veio correndo, lá estava o nosso amigo caído, perto da banca de jornal, morto, cheio de sangue!

O maldito Fido fugiu na garupa de uma moto, e nunca mais apareceu no bairro.

Era fim de tarde quando eu chegava do trampo, duas viaturas me pararam, pediram os documentos e comentaram do assassinato de um jovem. Perguntaram-me se eu não havia visto nada de suspeito, fiquei curioso, afinal quem teria sido a última vítima do momento, com certeza deve, ninguém morre por acaso.

Que pensamentos os meus! Às vezes esqueço como é o mundo em que vivo, a maioria tem esse como o primeiro pensamento quando ouve de alguma morte na periferia. Mal sabia eu que ali a poucos metros estava meu amigo Lê.

Ainda na descida para chegar no local do assassinato avistei Nay, que veio desesperada ao meu encontro. Meu coração disparou, pensei logo nos irmãos. Minhas pernas paralisaram, e como pressentimento, lembrei do Lê. Nay chorava desesperada, e puxava minha mão. Eu não queria segui-la, mas quando dei por mim, já estava frente a frente com meu mano desfigurado pelas balas, e a caneta na mão. Ajoelhei-me próximo ao corpo e fiquei estático, o sangue empoçado me parecia impossível ser dele. Lembrei de quando éramos crianças e os olhos dele se enchiam de lágrimas quando ouvia um trovão, ele lembrava do irmão e dizia sobre o medo da morte.

- Eu só não quero sentir dor nesse dia.
Era o que ele dizia já choroso. Puxa vida, o Lê ta morto. Meu peito tava doendo como nunca, eu queria chorar, mas só conseguia espremer a solidão que sentia por dentro. Esse foi o dia em que descobri o valor de uma amizade. Ver um mano estirado com os olhos abertos era muito duro de aceitar. Será que ele sentiu a dor de que tanto tinha medo?

Quero fugir daqui, entrar num túnel sem fim, viajar numa galáxia bem distante, esquecer de tudo o que está acontecendo, só não quero presenciar mais nada, só não quero ficar aqui!