domingo, 30 de março de 2008

Turma do 1 colegial D (sala da Ivone) - 1998
A galera estava incompleta, o povo faltou em peso nesse dia!
Aos manos, podem pular essa parte, pois já sabem de cor o significado de cada palavra.
Aos novos manos, saibam que na periferia usamos uma linguagem diferente do resto da cidade. É uma diversidade enorme de gírias que formam uma comunicação recheada de códigos, às vezes para facilitar às vezes para ocultar, uma linguagem própria que dá orgulho, às vezes.

Segue um pequeno dicionário para ninguém ficar perdido nas minhas idéias! Consulte, sempre que precisar!

A gíria dos "mano"

Abraçar idéia: mano não acredita em teoria..........abraça uma idéia.
Adiantar o lado: mano não ajuda alguém..........adianta o lado.
Agüentar: mano não rouba..........agüenta.
Amassos: mano não dá abraços..........dá uns amassos.
Apagar: mano não dorme..........apaga.
Aviãozinho: mano não encontra pessoas que levam e trazem..........encontra aviãozinho.
Avoados: mano não conhece pessoas distraídas..........conhece avoados.
Bagulho: mano não consome drogas..........fuma bagulho.
Bagulhos: mano não carrega coisas..........leva bagulhos.
Balada: mano não vai a festa..........vai pra balada.
Baseado: mano não fuma maconha..........fuma um baseado/ um béck.
Bem bolado: mano não mistura as idéias..........faz um bem bolado.
Bike: mano não tem bicicleta..........tem bike/ magrela.
B.O.: com mano não acontece ocorrências..........acontece b.o.
Bolado: mano não fica chateado/ abalado/ com pé atrás..........fica bolado.
Botar banca: mano não ostenta..........bota banca.
Brechas: mano não encontra aberturas..........encontra brechas.
Dar brecha: mano não deixa de ajudar nos melhores momentos..........dá brecha
Breja: mano não bebe cerveja..........toma breja.
Busão: mano não anda de ônibus..........pega busão.
Cabreiro: mano não fica bravo..........fica cabreiro.
Cabrito: mano não faz algo ilegal..........faz cabrito/ gato.
Cabuloso: mano não enxerga algo muito legal/ macabro..........enxerga algo cabuloso.
Cagüeta: mano não conhece delatores..........conhece cagüeta/ x9/ dedo duro.
Cair matando: mano não se aproxima..........cai matando/ chega junto.
Cair prá dentro: mano não entra..........cai prá dentro/ (drento).
Cair pro litoral: mano não vai para o Guarujá..........cai pro litoral.
Capotar: mano não cai..........capota.
Catar: mano não namora..........dá uns cata.
Chapado: mano não acha algo muito bom..........acha chapado/ maneiríssimo/ maneiro/ show de bola.
Chapar o coco: mano não bebe..........chapa o coco.
Charles Bronson: mano não conhece indivíduo matador, do tipo cara sangue frio, que atira primeiro e pergunta depois..........conhece Charles Bronson
Chepar: mano não lancha/almoça..........bate chepa (vira chepeiro).
Codinome: mano não tem apelido..........tem codinome/ vulgo
Colar: mano não chega num determinado local..........cola em algum lugar
Comédia: mano não acha algo engraçado..........acha comédia.
Correria: mano não possui negócios em andamento..........possui correria
Fazer correrias: mano não faz sacrifícios/ trabalhos difíceis..........faz correrias
Crocodilagem: mano não trai..........faz crocodilagem.
Curtir um som: mano não ouve música..........curte um som.
Cururu: mano não conhece pessoas sem moral / babaca/ metido a malandro, que fala mais do que faz/ otário..........conhece comédias/ cururu.
Dar área: mano não sai de um determinado local..........dá área.
Dar boi: mano que não puxa saco ou facilita as coisas..........é mano que não dá boi/ não dá mole.
Dar idéia: mano não dá confiança..........dá idéia.
Dar o toque: mano não cumprimenta..........dá o toque dos manos.
Dedo mole: mano não tem facilidade em matar..........tem o dedo mole.
Deixar no gelo: mano não esquece os acontecimentos..........deixa no gelo.
Destruir: mano não mata..........destrói/ dechava.
Disenteria: mano não tem diarréia..........tem disenteria.
Dois palitos: mano não tem atitudes muito rápidas..........tem em dois palitos/ 1 ,2.
Du caralho: mano não acha muito bom..........acha du caralho.
Embaçado: mano não passa por momento difícil/ ou acha algo difícil..........passa por momento embaçado/ acho algo embaçado.
Emboscada: mano não arma armadilha..........arma emboscada
Estalar o chicote: mano não briga..........faz o chicote estalar
Estiloso: mano não se veste bem..........fica estiloso.
Fazer miséria: mano não faz estrago..........faz miséria.
FDP: mano não conhece filho da puta.......... conhece FDP.
Ficar a fim: mano nunca fica apaixonado..........fica a fim.
Ficar na moral: mano não fica tranqüilo/ na dele..........fica na moral.
Ficar puto: mano não fica nervoso..........fica puto.
Ficar só o caldo: mano não fica cansado..........fica só o caldo.
Filmar: mano não observa as pessoas..........filma.
Firmeza: mano não faz algo legal..........faz umas parada firmeza.
Fissura: mano não fica ansioso..........fica na neura/ na maior fissura
Fita: mano não rouba..........faz fita / finta
Foder: mano não se dá mal..........se fode/ a casa cai.
Froid: mano não conhece pessoa problemática, complicada com a vida..........conhece pessoa froid
Fuder: para mano, quando algo deu errado..........fudeu.
Fudeu o barraco: para mano, quando tudo deu errado..........fudeu o barraco.
Furada: mano não extravia do caminho certo..........cai em furadas.
Gambé: mano não é parado por polícia..........é parado por gambé/ coxinha.
Gente boa: mano não é honesto/ bom..........é gente boa/ mano de fé/ humilde/ firmeza.
Gueto: mano não mora na parte crítica da periferia..........mora nos guetos.
Irado: mano não acha interessante..........acha irado/ bem loco.
Isqueiragem: mano não agita briga..........faz isqueiragem.
João sem braço: mano não se faz de coitado..........dá uma de João sem braço.
Lagartixa: mano não dança rebolando o corpo..........dança lagartixa.
Ligado: mano não presta atenção..........fica ligado.
Loki: mano não dá uma de bobo..........dá uma de loki.
Mancada: mano não magoa alguém..........dá mó mancada/ deixa a mó falha.
Manjado: mano não se torna suspeito..........fica manjado.
Maquinado: mano não fica armado..........fica maquinado.
Migué: mano não mente..........dá uma de migué.
Mina: mano não tem namorada..........tem mina.
Molhar a mão: mano não compra as pessoas..........molha a mão.
Muquiar: mano não esconde algo que não pode ser visto..........muquia.
Nada a ver: mano não diz palavras sem sentido..........diz coisas nada a ver.
Nas coxas: mano faz algo desleixado..........faz algo naquelas/ nas coxas.
Nóia: mano não conhece dependente de drogas..........conhece nóia.
Noiado: mano não é dependente de drogas..........é noiado/ está nóia.
Oitão: mano não tem revólver calibre 38..........tem oitão/ três oitão.
Pá de coisa: mano não faz muitas coisas..........faz uma pá de coisa.
Pagar de gatinho: mano não faz charme..........paga de gatinho/ marca presença.
Pagar mico: mano não passa vergonha..........paga mico.
Panguando: mano não fica viajando em pensamento..........fica panguando.
Panguão: mano não é bobo..........é panguão/ vacilão.
Passagem: mano não tem visita breve em algum local..........tá de passagem.
Passar o facão: empresa de mano não demite..........passa o facão.
Pega: mano não fuma..........dá uns pega.
Perifa: mano não mora na parte menos desenvolvida da cidade..........mora na perifa/ periferia.
Pesar nas idéias: mano não enche o saco..........fica pesando nas idéias.
Pés-de-pato: mano não conhece justiceiros..........conhece pés-de-pato.
Piaba: mano não leva tapinha..........leva piaba.
Pianinho: mano não fica quieto..........fica pianinho.
Pipoka: mano não é medroso, ou desiste de algo..........pipoka/ pipocou
Pivete: mano não foi criança..........foi pivete/ moleque.
Playboy: mano não conhece rapaz rico..........conhece playboy.
Prateado: mano não usa arma..........anda com prateado.
Q.R.U.: mano não resolve problemas..........resolve Q.R.U.
Quebrada: mano não mora em bairro..........se esconde nas quebradas/ na área.
Quebrar: mano não bate nas pessoas..........quebra.
Rala-peito: mano não vai embora..........rala-peito.
Rangar: mano não come..........ranga.
Renca: mano não tem muito..........tem renca.
Representa: mano não tem atitude..........representa.
Rolê: mano não dá voltas/ passeios..........dá uns rolê.
Sacar: mano não entende..........saca.
Sair na captura: mano não procura namorada..........sai na captura
Sangue nos olhos: mano não fica com ódio..........fica com sangue nos olhos.
Sangue no zóio: mano não fica com estado emocional explosivo/ reação violenta/ ou perde a cabeça antes de uma ação agressora..........fica com sangue nos zóio.
Sapecar balas: mano não dispara tiros em alguém..........sapeca bala.
Se ligar: mano não entende..........se liga.
Secada: mano não encara..........dá uma secada.
Subir: mano não morre..........sobe
Tirar: mano não faz desfeitas para alguém..........tira a pessoa.
Tirar racha: sangue na veia de mano não corre..........tira racha.
Trampo: mano não consegue um emprego..........arruma trampo.
Tretar: mano não briga..........treta.
Tretas: mano não procura encrencas..........arranja tretas.
Trocar idéia: mano não fala..........troca idéia.
Truta: mano não tem amigos..........tem uns truta/uns chegados/uns camarada/uns brothers/ uns mano.
Vacilar: mano não erra..........vacila.
Vazar: mano não vai embora..........vaza/ pinica/ cai fora.
Vida loca: mano não tem dificuldades no dia-a-dia..........tem vida loca.
Virar: quando algo dá certo para pessoas..........para mano vira.
Vital: mano não tem currículo..........tem vital / vitae.
Xavecar: mano não paquera..........xaveca.
Xavequeiro: mano não é paquerador..........é xavequeiro.
Zé povinho: mano não conhece pessoa que faz intriga..........conhece zé povinho/ candinha/ mexeriqueira.
Zóio de Thundera: mano não conhece invejosos..........conhece zóio de Thundera
Zuado: mano não tem coisa estragada..........tem coisa zuada,
Mano não é gente..........é mano.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Elvis não morreu

Mais uma rosa derramava o sangue ainda na flor da idade. Eis o sangue de mais um mano meu!

Elvis era um moleque esperto, de 16 ou 17 anos, curtia rock, e tocava numa banda chamada Metal Ícaros. Andava com um violão pra cima e pra baixo, depois comprou uma guitarra e já tocava pra caramba. De vez em quando parava em frente a Nossa Senhora de Fátima, igreja do bairro onde muitos se encontravam, e tentava tirar a nota de novas melodias. Os pais foram embora para Goiás, mas ele acreditava que o lugar dele era ali junto da galera que ele considerava como irmãos e principalmente por ter a certeza que não se adaptaria numa cidade menor no interior.

Por uns tempos andou “curtindo” a vida ao extremo, fumava, bebia, curtia várias baladas. Com a galera do rock freqüentou muito a Galeria do Rock no centro da cidade. Tava sempre com uma camisa preta da banda Angra, era quase sua marca registrada. A língua meio presa também era sua característica, chegava a gaguejar se ficava nervoso, mas não abaixava a cabeça para ninguém. Como a maioria dos jovens daqui, não acreditava que seria derrubado facilmente. Ele tinha muitos amigos, mas isso eu só descobri no infeliz dia!

Elvis adorava a brincadeira com seu nome: Elvis já morreu, Elvis não morreu. Todos cansaram de ouvir essas frases de sua boca. Era engraçado ter um amigo chamado Elvis que, ainda por cima, tocava guitarra e violão!

Por conta das correrias diárias, fazia tempo que eu não cruzava com esse mano, mas tava na memória sua cara de menino com medo! Era assim que eu sempre o via. Certa vez Nay fez uma peça de teatro na igreja, Elvis e sua irmã Sheila também participaram, pois às vezes freqüentavam o grupo de jovens. A peça, para variar, foi escrita por Nay e relatava o caso de um jovem que se envolvia com drogas, dívidas e acabava morrendo. Elvis era esse tal personagem chamado Gabriel. Conseguiram descolar até um caixão de madeira feito para as festas de haloween no velho Tenente. Um dos colegas tinha uma filmadora e o Elvis se enfiou dentro do caixão para representar a cena final. Parecia morto de verdade, isso dentro da igreja, ainda com as flores da última missa.
Tal cena nunca pareceu provável, pois ninguém do grupo se envolvia nas correrias. Mas depois desse tempo, Elvis e seus amigos sumiram da igreja. Nay vivia falando neles, que agora só queriam saber de farra, sabe-se lá o que andavam aprontando. O zé povinho já tava comentando. A imaginação dos fofoqueiros voava alto, se pá, já era até aviãozinho na língua desse povo!

Dizem que ele começou a se envolver com uma ex-mina de ladrão! Furada, e os chegados dele ainda advertiram, mas moleque novo, já viu, parece bobo quando se trata de mulher. A longa história que decorreu depois dos primeiros vacilos nem vou contar, vou direto à parte que gostaria que soubessem.
O Rodrigo, um dos meus manos, bateu lá em casa com aquela cara de pavor, branco que nem papel. Era um dia ensolarado, por volta das 13 horas; olhei para ele e já senti que vinha bomba.
- Notícia ruim, cara!
- Quem morreu mano? Foi só o que saiu da minha boca, já nervoso de imaginar quem podia ter sido dessa vez!
- Mataram o Elvis!

Putz, leitor, outra facada que levei! O Elvis não era tão próximo como o Lê, mas só por ser um mano querido da minha irmã já merecia mó consideração e revolta. É por isso que esse povo da periferia acaba se tornando tão forte perante tanta desgraça. São feridas que se abrem em diversas partes do corpo, cicatrizam, mas ficam lá sempre, para que possamos lembrar e ficar fortes perante as próximas que conseqüentemente virão.
- Como foi isso, Digão!
- Pegaram eles na covardia, irmão! Tava indo pro Tenente, e resolveu dar a volta pelo beco atrás do J.J. (outra escola do bairro), os meninos já tinham aconselhado para ele não andar por ali sozinho, mas ele não acreditou!
- Mas quem foi o vagabundo!?
-Ninguém sabe! Os moleques estão vendo ainda, disseram que isso não ia ficar barato não!
-Puta, cara, que merda, moleque novo, mó vida pela frente, não aproveitou nada ainda... Mas e aí, quando vai ser o enterro?

Elvis morreu! O Tenente ficou de luto e ninguém teve aula naquele dia. A brincadeira foi usada, pois não havia outras palavras. Os amigos acharam que era brincadeira de novo. Dessa vez não era!
- Amanhã à tarde. A família tá chegando de Goiás. Mas aí, Cassiano, os caras judiaram, bateram pra caramba no Elvis, no mínimo uns três covardes. Depois deram três tiros. Ele se arrastou até a casa do Silas para pedir ajuda, mas nem deu, foi levado pro açougue do Hospital Campo Limpo, e lá deu o último suspiro!

Peguei uma carona com uns manos, já era tarde, passava das cinco horas, uma daquelas tardes que se mostram sinistras quando alguém morre, o vento se ouve, o céu cheio de nuvens escuras anuncia a chuva próxima, todo mundo com cara de revolta e tristeza. Tava cheio o velho São Luiz, os amigos roqueiros compareceram em peso, todos de preto, com faixa na cabeça escrita Elvis. Pelos cantos a galera com os olhos cheios de lágrimas, puta tristeza bateu em mim, mas não chorei. Aproximei-me da sala de velório e os mais chegados estavam debruçados no caixão. Flores amarelas enfeitavam a pequena sala, e o pessoal da igreja ora cantava alguns hinos, ora fazia as orações em memória do menino. O caixão preto, provavelmente da prefeitura, tinha a camisa do Angra, banda predileta dele, por cima uma faixa da banda Metal Ícarus e a palheta dele. Não pude me aproximar de imediato para ver seu rosto, senti uma força que me segurou por alguns minutos. Como eu já devo ter dito em outra página qualquer, a morte não me desce ainda, não compreendo o seu significado e o que acontece depois! Recuso-me a acreditar que tudo vira fumaça e desaparece de repente!
Encarei todos ao redor, todos tinham ao menos uma lágrima escorrendo por entre o rosto. Resolvi ir à sala de velório ao lado, e lá estavam dois irmãos também assassinados, mas havia meia dúzia de pessoas em volta, provavelmente a família. Lá as pessoas não choravam, todos firmes, provavelmente aquelas mortes foram buscadas.

Voltei novamente para o velório e resolvi encarar aquela morte de frente. Me aproximei e somente o rosto de Elvis estava visível pela janelinha, aquele rosto branco agora sem vida nenhuma, com a pele rígida, coberta de hematomas, um olho roxo, a boca machucada. Era a prova do quanto foi espancado. E o pior de tudo, trazia o mesmo sorriso que carregou a vida inteira nos lábios. Mas o que era aquilo? Uma morte como a que ele sofreu, e um sorriso daquele? Aí eu chorei, irmão! Chorei porque duvidei que ele estivesse realmente morto, e que não o veria nunca mais, que não realizaria seus sonhos, que não conheceria o mundo de verdade, que ficou somente naquela periferia, nasceu, sobreviveu e já fora assassinado!

Que realidade desgraçada essa!

Já era tarde e os homens pediram para fechar o caixão. Os três amigos se aproximaram, e começaram a conversar com o corpo. Eles sorriam, prometiam algo para Elvis, choravam ao mesmo tempo, e todos de mãos dadas fizeram alguma jura, que não foi ouvida pelos demais presentes! A última vista em seu rosto e aquela multidão seguiu até a cova. Passamos no corredor de ossos, a vista por todo o cemitério, que estava situado no alto do São Luiz, portanto a visão era privilegiada. Alguns animais pastavam dentro do cemitério. Olha a condição do povo! Buraco já pronto, ao lado cinco covas do dia com flores ainda vistosas, as pequenas gotas já molhavam o rosto de todos os presentes. Alguns amigos olhavam pro céu com um sorriso nos lábios e uma lágrima nos olhos, acreditavam com certeza que ele já estava lá, e esperando por eles. Engraçado, mas todos ali acreditavam firmemente em Deus, e era a única coisa que os confortava. Bateram palmas, cantaram uma música do Legião Urbana, e aplaudiram novamente. Um pássaro apareceu do nada, passou no meio de nós e foi para bem alto e longe de todos. Alguns sorriram e com certeza tiveram o mesmo pensamento que eu. Era uma mensagem simplória de Elvis ao chegar onde quer que tenha chegado. A chuva continuou serena, os homens continuaram a jogar terra, um amigo estava em pranto. Era o rapaz que morava na mesma casa que ele e dizia o tempo inteiro:

- Eu te avisei tanto amigo! Por que você não me ouviu? Por que, cara?

Uma menina chorava muito ajoelhada e fazendo a cena que muitos estavam acostumados, pedindo para não jogar terra, que ele ainda podia estar vivo, que não era justo, que queria ir junto, e tantos outros desabafos que atormentavam sua cabeça. Cada um jogou uma porção de terra com a mão, algumas minas uma flor, e o coveiro fincou a cruz de madeira inscrita com o número de mais uma estatística. Uma coroa de flores ficou por baixo da faixa Metal Ícarus.

Todos, em silêncio, foram se retirando e retornando para o portão principal. Uns pegaram carona, outros o buzão mesmo, todos chegaram com um clima de: falta uma peça em nosso dominó, não dá para jogar essa partida!

Elvis não morreu! Um amigo gritou, e os outros sorriram.

Fui pra casa, e aquelas cenas do dia não me saíram por duas semanas da cabeça. Morte era sempre morte, mas cada velório tinha seu particular.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Essa turma estava enchendo a laje de um dos vizinhos, o seu Antonio, pai do Tampa!
Isso já faz um tempo, bem se vê pelas roupas fora de moda.

Bom dia jardim das Rosas


O Tiozinho era o sorveteiro do bairro quando eu era criança. A senhora esposa dele era uma velhinha que também vendia geladinhos na casa deles, e nos dias de calor toda a molecada arranjava umas moedas para se refrescar com os deliciosos geladinhos da dona Quitéria.

O sorveteiro era um cara bacana, porque conversava com todo mundo e no final da tarde passava cumprimentando a todos e às vezes até dava sorvete de graça para gente, aqueles que sobravam depois de um dia inteiro de trabalho, mas o mais intrigante era o jeito do tiozinho. Ele carregava no rosto o semblante de uma criança meio boba e sempre feliz, o sorriso nunca saía dos lábios, e o bom-dia nunca saía da boca, mesmo que fosse boa-tarde. Ele dizia com sua voz engraçada:

- Bom dia, amiguinho! Ou bom dia, menino! Bom dia, menina!

E isso era durante todo o percurso até chegar na casa dele. Era um senhor alto (quer dizer, era, porque hoje descobri que eu era muito pequeno, ele devia ter um metro e 75, no máximo), magro, de cabelos lisos e meio grisalhos, partidos de lado, meio corcunda pela altura mal administrada.

Ele dava bom-dia até para os cachorros, e todos gostavam muito dele, mas eu realmente acreditava que ele deveria ser louco, afinal, ninguém cumprimentava as crianças (os adultos achavam que não tínhamos sentimentos formados, ou então que não merecíamos o respeito deles).

Aliás, as pessoas do bairro não tinham o bom costume de dar bom-dia uns para os outros, davam um simples aceno de cabeça, e estava tudo bem. O tiozinho inovou o conceito desse cumprimento, e apesar de quase não o ver mais pelo bairro, o seu jeito de ser nunca me saiu da cabeça, e hoje eu faço o mesmo, cumprimento até os animais, e por incrível que pareça, às vezes tenho resposta, alguns cachorros também estranham e parecem me dizer, com seus olhares de suspeitos:
- Esse cara tá maluco, nem me conhece e fica puxando conversa, eu não vou dar bola!
E nisso o cachorro vira de costa e sai abanando o rabo e balançando a cabeça negativamente! (Eu sei que é difícil acreditar, mas isso é verdade).

O bom-dia é muito importante na vida das pessoas, digo isso porque agora vejo como ele muda o nosso dia. Começar a manhã com um bom-dia – Se ele for verdadeiro, é claro, porque se não for fica muito na cara para quem recebe também –, traz energias positivas de uma pessoa para a outra, está no sorriso e no olhar, e ter o dom de dar vários bons-dias com o mesmo espírito do primeiro não é para qualquer um, por isso tenho tanta admiração por esse senhor.
“Bom dia, Jardim das Rosas!”

O tiozinho é somente mais uma das figuras carismáticas e marcantes do bairro, assim como temos o Maluco Beleza, um cara que é doido de verdade e perambula pelo bairro há mais de uma década, sempre sujo, cantando músicas, dando jóia para uns que pagam a cachaça ou o cigarro de vez em quando na padaria Curitibana e mandando outros tomar no cu, quando o provocam para vê-lo ficar mais doido. Todos o conhecem, e quando vemos um maluco descendo a ladeira com ginga de Beto Barbosa (ele já usou muita droga na vida, e isso ajudou a acabar com os neurônios dele), o pessoal logo diz:

- Lá vem o Beleza, cuidado que às vezes ele tá de mau humor!

quinta-feira, 20 de março de 2008

Princesas do jardim

Quando elas passam os manos já preparam as cantadas, e as chamam de princesas, e elas abrem um grande sorriso.

Há dias em que a mulherada cai matando nos manos e o que as atrai pode ter vários motivos: Talvez a grana sem miséria, os carros novos, as motos poderosas, as festas, o poder que o olhar ou as palavras desses manos possuem sobre os outros, a chance de conseguir coisas com maior facilidade, a lábia de 71 que às vezes convence até que o Diabo é inocente, a carência familiar, a falta de estrutura dentro de casa, ou simplesmente pela aventura de sair com um mano fora da lei que diz com voz mansa enquanto a menina desfila pelas ruas:
- Bom dia princesa, como você é linda, hein!
Luíza, uma garota aqui do bairro, desde os 9 que planeja a sua festa de 15 anos. Os pais dela não poderiam gastar muito, o luxo não reinaria para a princesa Luíza, mas ela não ficaria sem o sonho tão esperado.
O local escolhido foi o salão de festa do prédinho da Cohab. Lá morava Marquinho, o namorado da Luíza. A mina é firmeza, convidou toda a galera, Ricardo, Jobson, Meg-Lu, Juninho, Enovi, toda a turma da escola, e a minha princesa Raquel.

Raquel era o oposto de Luíza, mas estava tão linda quanto; vestida de preto marcando o corpo num vestido até o joelho, cabelos presos deixando seu rosto de deusa à mostra, me fazia esquecer todas as suas má-criações. Se eu pudesse, caía de joelhos sem vergonha.
- Ah, seu eu pudesse!
Estava maravilhosa. Os marmanjos do bairro babavam, secando-a dos pés à cabeça.


Aquela noite foi inesquecível, parecia um desfile de moda, todos colocaram suas melhores roupas, para dar presença nas fotos. Nossa festa de gala. As minas de salto alto, os manos de social, até gravata colocaram, mas como não eram tão sérios, as gravatas possuíam um desenho animado; Tasmânia agora é moda, Pernalonga, Piu-Piu, tudo nesse naipe ilustrando as gravatas. O som maneiríssimo de todas as décadas, tocou de Charles Brow até o Raça Negra que reinava nas paradas. O sambinha no pé das minas chegava a ser engraçado porque muitos já curtiam rap. Luzes piscavam, muita cerveja e guaraná, buraco quente para encher a pança de quem não havia jantado, 98% dos que estavam ali (ninguém tem o costume de jantar antes de ir a uma festa).
Ricardinho embebedou-se até a alma, Juninho sem comentários, também não resisti, era dia de festa e todos deviam comemorar, arrisquei até dançar Bee Gees, que mico! Engraçado como todos criam coragem depois de alguns goles, desafiando perigos, isso pode ser fatal. Não me importei com nada nesse dia, há muito não me via tão corajoso e alegre, Raquel dava uns beijos em um cara, fiquei puto da vida, aquela mina tinha que ser minha e de mais ninguém. Fui até eles, empurrei o cara, peguei Raquel pelo braço, dei-lhe um beijo desentupidor de pia, e em seguida veio o tapa, seguido, é claro, da porrada do mano. Eu nem liguei, aquele beijo foi tudo para mim, nunca havia visto estrelas, eu nem senti a dor, nunca vi tantas estrelas juntas, estrelas do beijo, do tapa, mas não tantas como as da porrada. Sua boca macia e doce valeu pela porrada, estava tão tonto que não consegui levantar do chão, sem forças como um bobo, estirado e ainda por cima com um sorriso enorme estampado na cara. Os amigos foram chegando e me rodeando, riam, Ricardo soltou uma gargalhada, seguida da escandalosa de Carlitos, tão grande que voltei à consciência, o Lê me estendeu a mão e disse:
- Se não me engano, foi de joelhos que prometeu cair pela Raquel. Mulheres... A que ponto, Cassiano, levanta amigo!
Saí com o braço no ombro dele rindo do que fiz!

quarta-feira, 19 de março de 2008

Dominado pela droga - Parte 2


O Dudu amigo do Juninho morreu numa madrugada de sábado. Ele havia fugido da escola e estava envolvido com o tráfico.
Numa festa de aniversário de criança em frente de casa houve o desespero.
O aniversariante fazia 4 anos. A casa estava lotada de crianças, e os adultos se amontoavam na calçada tomando cerveja e comendo salgados. O som alto animava a rua inteira, portão aberto, quem quisesse entrar na festa não pedia permissão, subia as escadas, comia e saía. Muita gente estranha, uma galera que não era da área sempre aparecia, e foi assim que o Dudu apareceu do nada, e só foi percebido quando uns malucos subiram as escadas trabucados e a galera começou a correr. Quem pôde fugiu para casa, as mulheres em desespero pegavam as crianças e escondiam em todos os buracos visíveis, debaixo das camas, atrás do sofá, no banheiro...

Os malucos estavam com armas infravermelho, e a luz era mirada na cabeça de todos que estavam na frente, a Nay arregalou os olhos, quando ficou de frente para a arma, se abaixou e saiu correndo. Os caras tinham alvo, e não iam fazer estragos maiores, o Dudu tentou correr, mas não pôde, foi agarrado pela gola da camisa e jogado escada abaixo, o impressionante é que os caras não se importaram em esconder as caras, arrastaram Dudu da calçada até a rua perto do esgotinho e dispararam as armas.
Das mulheres só se ouviam os gritos, a festa tinha acabado!

Quinze de novembro
Ele entrou,
Pediu um guaraná,
Talvez fosse o último,
Não podia imaginar.
Chegou de mansinho,
Com cara de anjinho.
Subiu as escadas,
Estava assustado
Quando viu os caras
Quase pulou para trás!
Ainda pediu misericórdia
Mas era tarde.
Foi agarrado pela gola
Tirado da casa
Aos chutes ele desmaia
Tão novinho, coitado!
Não podiam imaginar
Algo de errado
Com certeza está no ar.
Morrer desse jeito
Isso não é normal.
As senhoras ao vê-lo
Só comentavam esses ensejos.
Foi levado para rua
Espancado, pisoteado
Oito tiros na cabeça
Estirado na sarjeta.
A multidão acumulando
Todo mundo só olhando e comentando.
A madrugada chegou
A chuva entornou.
Sua mãe sabe-se lá!
Talvez dormindo
Sonhando com anjinhos,
Sem saber onde anda seu querido filhinho.
A polícia chegou,
No camburão o jogou,
Foi pro I-M-L
Esperar o reconhecimento,
Que a família procure
O menino que não voltou para casa.

Respeitado pelos manos, odiado pelos inimigos concorrentes. Foram oito tiros na cabeça e outros mais pelo corpo. A mãe dele estava conformada e não tinha lágrimas no enterro, esperava só o dia de pôr o vestido preto, como milhões de mães que esperam o dia para levar a rosa e rezar um Pai Nosso, uma Ave Maria, e pedir que Deus o perdoe pelos pecados cometidos, é hora do descanso da família.


Correr no campão em dias de sol, jogar futebol como se fosse profissional. Era o momento de esquecer a realidade, mas muitos se esqueciam completamente e brincavam com o perigo. O problema é que o satanás atiça a inocência e traz a violência, são os fatos da zona sul que arrepiam a alma. Filho drogado matando os pais, quando o vício domina é roça! Pivetada que não fica esperta deixa as mães ainda jovens de luto. As mães estão cansadas de rezar em cova rasa.

terça-feira, 18 de março de 2008

Fogos e fogo de São João


Era o ano de 1995, a galera estava alegre, todo mundo organizando as festas juninas: são João, santo Antônio, são Pedro, ninguém sabia quem era o santo do dia. O importante era a festa.
Nessa época ainda havia festas boas no Jardim das Rosas, e essa que vou descrever foi a última quermesse da década.
Dona Jacinta resolveu levar a filharada para rezar um pouco. Ela dizia:
- Cambada de descrente, vocês acham que sem Deus vão chegar a algum lugar? Rezar que é bom ninguém tá rezando, nem na hora de dormir, né? Cai na cama e dorme direto que nem cachorro! Depois não adianta reclamar que não consegue emprego e que as coisas estão difícil!
Clorisvaldo tava meio doente e preferiu ficar em casa de boa e debaixo das cobertas. Era uma daquelas gripes de derrubar leão. Minha mãe encheu ele de chá e deu um Doril.
Após a missa, Joãozinho e eu resolvemos dar um rolê pelo bairro. Fazia uma noite fria, João e eu usávamos jacos grandes de cor escura, era moda na época. Perto do escadão tinha o esqueleto de uma geladeira. O povo jogou algumas muambas e restos de móveis e com a propícia data festiva fizeram uma grande fogueira, e alguns moleques resolveram assar umas espigas de milho nessa churrasqueira improvisada. Enquanto isso, nós desfilávamos pelas ruas, o movimento era calmo a música de fundo já anunciava a festa caipira que aconteceria, mas a mistura de sucessos da rádio também dominava uma parte do tempo.
Uma ventania bateu forte em nosso rosto...
- O que foi isso cara? Que vento forte foi esse?
- Será que vai chover?
- Acho que isso é um aviso, hein mano, tá ligado naqueles filmes de terror que antes de alguém morrer acontece umas coisas sinistras!!?
- Sai pra lá, jaburu, tá doido Cassiano, hoje é noite de festa e eu ainda quero catar uma mina por aí!!
- Tô falando sério, cara, dizem que quando bate esses ventos assim, são as almas passeando pelo Jardim das Rosas, vai ver ficaram sabendo da festa, hehehe!
- Puta! Ou vieram avisar algo realmente! Será, cara??
- Vamos parar com esse papo que tá começando a me dar tremedeira!

João olha para trás despercebido e diz:
- Tem razão, vamos na 12 que lá tá rolando uma quermesse boa também.
De repente arregala o olho e grita:
- Puta, cara, não olha para trás mas corre agora!
- Han??!!
-Vamos ser metralhados porra, corre caralho!
Aquela seria a noite do desespero: 17 manos trabucados. Miniuzzi, metralhadora, pts, 38, calibre 12, pistolas 45, tinha até fuzil AR15, era armamento pesado que desfilava na quebrada, tudo diante dos meus olhos, nunca tinha visto algo igual na vida. Parecia que uma guerra ia acontecer, os malucos de jacão preto e sangue nos olhos. Um frio na espinha me arrepiou todo.
Era a guerra da turma do Rosa com o Macedônia, eles queriam conquistar território, logo pensei!
Fecharam a rua vindo em nossa direção em forma de paredão, lado a lado. Quando o cabeça deu um tiro pro alto, ouvimos tiros em outras partes do bairro, estavam na caça de manos que deviam grana. Começou o tiroteio confundindo-se com os fogos que explodiam em toda a região do Capão Redondo, Campo Limpo e Embu, eram as três regiões que estavam em volta do Jardim das Rosas. Era chegada a hora de fazer a limpa no bairro, de tempos em tempos isso acontecia, sempre corria uma lista dos marcados para morrer. Mas isso tinha que acontecer em plena noite de são João!
Todos corriam desesperadamente. Eu corri para um lado e João para o outro, anunciando para as famílias que deviam se esconder porque os tiros estavam comendo solto. As mães, desesperadas, corriam atrás dos filhos, as crianças brincando na rua estavam prontas para dançar a quadrilha marcada, e todo mundo saía puxando a molecada pelo braço, pelas calças. Tinha criança que não entendia nada, pois os adultos nem olhavam para a cara delas, às vezes nem as conheciam, viam que eram crianças sem adulto próximo e jogavam-nas pelas janelas e portas que se encontravam entreabertas. Eu parecia um furacão de tão rápido que corria, nem me reconheci. João entrou num bar e fecharam as portas em seguida, nem deu para eu entrar também, fiquei com jeito daquele urso bobo do desenho do Pica-Pau que ficava correndo de um lado para o outro na floresta quando entrava em desespero.
Os tiros se confundiam com os fogos e o choro das crianças que não viam seus pais. Então comecei a suar frio ao ver aqueles caras correndo pelos becos, sem saber onde me enfiar. Pulei a janela da casa de uma mulher que soltou um grito desesperado.
- Eu sou da paz senhora, só estou longe de casa também!
Meu irmão Beraldo vinha de algum lugar e passou aquele aperto. Foi enquadrado pelos malandros, que levantaram o boné dele e olharam fixamente nos seus olhos e soltaram a frase de libertação: “Esse tá limpo, pode liberar”.
Não preciso nem dizer o estado que a cueca do mano ficou, chegou em casa branco que nem papel depois do aperto, coração acelerado e tremedeira, quase teve um ataque.
Num intervalo de balas, corri para casa, estava com as portas trancadas e tive que esmurrar e gritar para abrirem, quando entrei vi minha mãe na mesa com pulso ensangüentado; arregalei os olhos e fiquei paralisado de susto.
- A mãe foi baleada, Cassiano, esses filhos da puta não respeitam nem os trabalhadores que estão em casa.
- Foi bala perdida, sossegue!
Minha mãe permanecia séria na mesa segurando a mão com um pano, mantendo-se calma ao dizer:
- Esperem passar essa perdição, os diabos já vão embora, depois vamos ao médico.
A porta se abriu com tudo (um puta chute na pobre porta de madeira), quatro caras invadiram nossa casa, cada um com uma AR15 na mão, Nay desmaiou quando olhou para as armas, e os outros irmãos paralisados de olhos arregalados.
- A gente tá procurando um maluco que deve, ele desceu por aqui!
Apontando para a saída de trás da casa, dona Jacinta disse com a maior frieza:
- Desceu direto, agora saiam, por favor.
- O maluco ta fugindo, vamu atrás!!
Racharam nossa porta com o chute, mais um prejuízo! Casimiro estava com as mãos nos ouvidos para não ouvir os tiros, chorava silenciosamente, só derramando as lágrimas pelo rosto. O caçula tava apavorado mesmo, isso é o que chamamos de traumas na infância! Na casa do lado a vizinha ficou paralisada, não saiu do lugar e não falou nada durante todo o acontecimento.
Um dos caras parou no ponto alto da quebrada, deu uns tiros pra cima e disse bem alto:
- É o seguinte, povão, esse bairro tá dominado, é nóis que manda aqui agora. Somos os reis, e não vai ter mais nenhuma festa, e que ninguém ouse nos desafiar saindo na rua porque isso virou campo de guerra e vamos matar todos os soldados inimigos.
Soltaram umas risadas macabras que ficaram registradas em minha mente.
Clorisvaldo catou uma faca na cozinha e correu para o banheiro. Sentado na privada com o terço numa mão e a faca na outra só sabia murmurar:
- Eu mato eles se aparecerem aqui de novo, eu juro que mato.

Eu não consegui adormecer imediatamente depois de tanta adrenalina, fiquei imaginando o estado do bairro depois dessa pequena guerra. Muitos buracos de bala; sabe-se lá quantos mortos.
Boa noite, Cassiano, mais um dia que acabou.

sexta-feira, 14 de março de 2008


Corinthians, eu nunca vou te abandonar...Porque eu te amo


É mano, tô ligado que o Corinthians não está numa fase boa, aliás, tá mal para caramba! A nação alvi-negra esta triste, o mundo chora, o Corinthians está na série B do campeonato Brasileiro. O treinador é o Mano Menezes, xará dos Mano da quebrada!
Segunda divisão é foda, mas torcedor que é torcedor não abandona o time nunca!

Ser corintiano é sofrer a cada lance, xingar o zagueiro ruim, colocar a culpa no juiz, lotar o estádio mesmo estando na segunda divisão, é fazer aposta de colocar a camisa dos bambi ou da porcaiada, caso o time perca. É sofrer rindo e chorando a cada vitória, porque no fim das contas, Somos Fiéis!!

No último jogo (12/03/08) O Corinthians venceu o Rio Preto por 1x0, em São José do Rio Preto. Os maluco de lá permanecem na zona de rebaixamento, o timão, com esse resultado, ficou no G4 e subiu para a segunda posição com 24 pontos.

Tenho saudades dos velhos tempos... Vou relembrar um pouco!!

O bairro tinha um grande número de corintianos. Quando havia jogos, e a maioria não podia ir até o estádio, a rua virava uma grande festa. Todos com as camisas preto e branco, algumas ilustradas com o gavião, grande símbolo da torcida. Depois que o jogo começava, eram exclamações ouvidas ao longe...
- Uhhhhh!!
-Ahhhhhh!
Os fogos também começavam antes da partida, e quando o time começava a perder, as paredes eram abaladas com os pulos e murros que os vizinhos davam. Quanta gente não passava mal, e às vezes iam parar no hospital antes de o jogo acabar. O fanatismo era repassado dos mais velhos para os recém-nascidos, que às vezes já saíam do hospital com a camisa do timão!
Não me lembro quando comecei a ser corintiano, acho que também fui influenciado pelos amigos do bairro que convidavam para assistir às partidas, já que o momento era sagrado e qualquer coisa devia ser interrompida se fosse feita na hora do jogo. Mas o grande sonho era ir ao Pacaembu e ver de perto uma grande vitória do Coringão.
Foi exatamente assim que participei de uma grande aventura, que na ocasião foi o maior sufoco da minha vida...
Podíamos comprar os ingressos tanto na quadra da Gaviões, como no estádio. Nesse dia resolvi comprar o ingresso na quadra, para facilitar, afinal Corinthians e Palmeiras jogando é um clássico, e não podia correr o risco de ficar sem ingresso, ou ter que comprar por preços absurdos dos cambistas na hora.
O dia prometia fazer um grande calor, o Sol já pintava sua cara as sete da manhã. A turma do bairro combinou de se reunir ao meio-dia no ponto final do Jardim Irene. Lá pegaríamos o Terminal Bandeira até o túnel da Nove de Julho e subiríamos a pé para a Paulista, até o Estádio Paulo Machado de Carvalho, o velho Pacaembu.
A partida só começaria às 16 horas, mas como também já sabíamos o que encontraríamos no caminho, o jeito era se antecipar. Caso houvesse imprevistos, ainda teríamos tempo de assistir ao jogo.
Uma galera uniformizada botava banca no busão, alguns com calça, camisa e jaqueta da torcida Fiel. O grupo era de umas 25 pessoas, que durante o percurso do ônibus foi aumentando para umas 70, todas com o mesmo destino, e nessa animação começavam os hinos em grande coro...

Salve o Corinthians
O campeão dos campeões
Eternamente
Dentro dos nossos corações
Salve o Corinthians
De tradições e glorias mil
Eo eo
Tu és orgulho
Dos desportistas do Brasil

A turma batia palma, batia o pé, gritava, todos numa alegria só.

A tristeza nesses dias de clássico era só dos motoristas e cobradores de ônibus. Acho que muitos se pudessem, escolheriam tirar folga nesse dia. Muitas torcidas depredavam o ônibus, e faziam uma zona sem tamanho, deixando os caras nos nervos!

A sorte era que podíamos sair do bairro, porque se dependesse de um ônibus parar nas estradas para a torcida, ninguém chegaria ao estádio.
Depois era descer e começar a caminhada; as torcidas iam se encontrando quanto mais se aproximavam do Pacaembu, as minas se maquiavam, passavam perfume, eram o toque bonito daquele grupo de malucos e malandros. Chegava um ponto que não dava para definir quem era quem, eram todos corintianos e ponto.

Nesse dia a sorte começou pro nosso lado, afinal o ônibus não foi parado pela polícia no começo. Numa outra partida em que isso aconteceu, os coxinhas deram sinal para o motorista parar quando viram os manos dependurados nas portas e janelas. Ao subir, fizeram todos que estavam vestidos com a camisa da torcida descerem. A Nay, a Jana e a Alessandra se livraram nesse dia, pois suas carinhas de moças comportadas (após fecharem o blusão e esconderem a camisa também, é claro) não levantaram suspeitas. Passaram como passageiras normais. Enquanto elas conseguiram ver o jogo, o resto dos manos ficaram de castigo por um bom tempo, depois de levar alguns tapas. Os que tinham drogas, ou algum tipo de arma, foram dali direto para a delegacia mais próxima. Os outros só perderiam o começo ou a partida inteira, era o presente oferecido pelos coxinhas FDPs.

Hoje lembrando, dou risada, mas naquele dia achei que ia morrer. Após descer no ponto do túnel, todos andavam em festa, quando avistamos um ônibus sanfona lotado com palmeirenses, armados com paus e pedras, espremendo-se pelas janelas. E o Aragon gritou:
- Olha os porcos!!!
Enquanto eles gritavam:
- Vamu pegar as galinha preta!!!
Nesse momento eu pensei:
- Morri!
E já comecei a rezar e pedir desculpas por todas as coisas de errado que tinha feito na vida, e que Deus me recebesse de portas abertas sem mágoas pelas blasfêmias que um dia já devia ter dito!

Booommmm!!

Eram as bombas, e tiros que a porcada soltava em cima da gente para apavorar. Agora era cada um por si e Deus por todos. Os manos até tentavam proteger as minas, eles se preocupavam com a fragilidade das moças. Se fossem pegas por um revoltado rival, Deus sabe o que podia acontecer. Um mano com certeza seria espancado até ficar roxo, eles não perdoam mesmo, o jeito era tentar andar em grupinhos de pelo menos quatro!

Primeiro pulei por cima de um muro na entrada de um edifício ainda na Nove de Julho. Quando deram uma trégua, subi a rua Peixoto Gomide, tão rápido, que o ligeirinho ficaria no chinelo, cheguei na Paulista sem fôlego e sem cor, tirei a camisa para não piorar a situação, mas quando os policiais pegaram a galera, não teve perdão. Corintianos e palmeirenses viraram somente torcedores e vândalos!
- Os homi chegaram!
- Mão na cabeça, desce todo mundo! Agora!
Respeito é zero, eles nunca acreditavam que no meio daquela bagunça pudesse haver pessoas que merecessem alguma consideração.
- Paredão, todo mundo!

A cavalaria quando chegava botava banca, com uniformes pretos, cavalos gigantes, todos armados. Dava um medo de arrepiar o último fio de cabelo, fazendo todo mundo correr e se alinhar para, segundo eles, organizar a bagunça e evitar mortes!
Foi bom a chegada dos coxinhas, se olharmos pelo lado do massacre que seria se fossemos pegos, pois a turma dos porcos era o dobro da nossa, porém, se contar pelo lado das humilhações, a coisa também foi muito feia. Os PMs bateram com cassetetes e emparedaram a turma por horas, fazendo revistas e apreensão de drogas e armas. Metade da galera chegou no Pacaembu no começo do segundo tempo, sujos de lama e com roxos pelo corpo todo.

Mas enfim, o espetáculo...
Não havia nada igual a assistir um clássico do Corinthians. A corrente da nossa torcida era muito forte, da bateria da Gaviões sempre havia alguns na arquibancada fazendo aquele barulho organizado. Num ônibus iam as bandeiras gigantes que ao chegar na arquibancada faziam o símbolo da Gaviões ter dimensões gigantescas. Entre os hinos, a chegada de cada jogador era a glória da torcida. Nesse ano os jogadores eram muito aclamados, e um grande coro gritava...
- Eô, eô, o Viola é um terror!
-Uh! Marcelinho!, Uh! Marcelinho!
- Ronaldooooooooo! – Esse era o goleiro.
Os puxadores gritavam as frases e a torcida em massa repetia:
- Corintiano, maloqueiro e sofredor! Graças a Deus!
- Eô, eô, o Corinthians é o terror!
- Pacaembu ela domina,
Morumbi ela destrói,
No Rio ela arregaça,
Qualquer um que ela encontra,
Não tenho medo de morrer,
Eu dou porrada pra valer,
Eu amo essa torcida,
E o nome dela eu vou dizer
Como é que é?
Ga-vi-ões Fiel!
Timão, e ô! Timão, e ô!

- Eu tenho a força, sou o invencível, somos amigos e juntos venceremos a corrente do mal, laralalalalala Corinthians! Laralalalalala Timão!
Todos batendo com a palma das mãos ritmos para vários versinhos que irritavam a outra torcida.
Nossa! Como eu pirava!
No meio daquela torcida gigante, a maior de São Paulo, a energia do estádio era tão forte que às vezes eu sentia aquele arrepio por todo o corpo. Quando algum jogador se aproximava e quase fazia um gol, a torcida junta gritava...
- Uuuuuuuuuuuuuhhhh!
De repente vinha um...
- Oooooolaaaaaaaaa...
E quando o Marcelinho Carioca fazia do campo um palco e dava um show de dribles, a torcida gritava...
- Oléeeeeeeee!
Quando o Palmeiras começava a apavorar, a torcida já preparava um sai zica, com as mãos, todos juntos com o único pensamento!
- Erra o gol, filha-da-puta!
São Jorge é o padroeiro do Corinthians, por isso alguns levavam até o santo para dar uma forcinha; e de repente...
- Goooooooooooooooooooooooooool, é do Viola!
O Viola imitou um porco após o gol e a torcida foi à loucura!
- Chora, porco imundo! Quem tem Viola não precisa de Edmundo!
- Pórópópópópópópó, Pórópópópópópópó!
- Pluft, plaft, zum, o Coringão já fodeu mais um!
Nessa partida ganhamos de 1 a 0, mas a taça do campeonato foi do Palmeiras. O título era o de Campeão Paulista de 1994.
Mas esse jogo ficou na minha história.
A volta para casa foi mais tranqüila, os soldados já estavam relaxados!!

quinta-feira, 13 de março de 2008


Essa festa foi em comemoração as nações unidas! Todos os manos foram obrigados a despertar os dons artísticos e pagar o mico na feira. Esse grupo de pagode era do Eduardo, o vocalista da turma, também faziam parte o Anderson e o Marco Antonio.

EE José Joaquim... o famoso J.J


Essa era uma das turmas da 1º série do José Joaquim, mais conhecido como J.J. Nesta turma está o Silas, o último de camisa azul na segunda fileira, lado esquerdo, ao lado dele o Olivan. Também está o Fernando, o Luizinho e a Rosa.

O coração bateu mais forte e as pernas ficaram bambas

O ano já está acabando, mais uma vez, e o que me espera não ouso pensar, mas acho que não vou morrer, já passei da data que tanto temia. Aos dezesseis anos tinha a certeza de que ia morrer, tava viciado por uma música do Legião Urbana, 16, e como o João Roberto, tinha os dias contados.

Aquela besteira de paixão dominou meu físico e minha mente, acreditei que ia morrer de amor até os dezesseis, a mina chamava-se Raquel, era linda, como nunca havia visto em toda a minha vida, todos eram loucos para ficar com ela, mas só para zoar, ninguém queria levar nada a sério, eu estava apaixonado, ela só tinha 14 anos. Em sua festa de quinze, convidou uma renca de gente, menos eu (sei lá por que, leitor), seus olhos verdes como duas esmeraldas me fascinavam, seu cabelo sedoso que ao passar deixava um gostoso perfume de xampu, aliás, até hoje não descobri qual. Era mais baixa que eu, com um corpo violão arrancando suspiros quando passava, mas tudo o que tinha de bonita tinha de arrogante e ambiciosa, queria crescer na vida a qualquer custo, eis o seu maior defeito.

Raquel me enfeitiçava como uma fada misteriosa, tomava conta de meus pensamentos. Certa vez, ao falar com ela, cheguei a ficar gago, ela me ignorou e riu sem dó, nunca falei a ninguém, mas dava para ver em meus olhos, virei um trouxa sem igual, creio que superei até os bobos da corte, das aulas de história do professor Moacir, que ao menos ganhavam para fazer papel de palhaço. Cheguei a escrever cada poesia melosa, ainda bem que jamais fui capaz de entregar, ela já estava fascinada pelo dinheiro e incapaz de se deixar levar pelas coisas do coração. O último cara que Raquel ficaria seria o pé-rapado do Cassiano.



Fosses tu na madrugada

No clarão de minha saga

Nasceste para sofrer

Ou simplesmente para morrer.

Aqui estou

Para te amar a vida inteira

Acabar com a solidão que sempre te rodeia.

Desprezaste meu amor

Que para ti não vale nada

Em mim sinto calor

Em você frieza amarga.

Queres sofrer

Fique sozinha

Não faça do amor um simples capricho

Esse sentimento lindo

Foi feito para se viver

Não jogue fora o amor

Que sinto por você.

Seu tempo está acabando

Os minutos vão passando

O relógio da luz divina

Marca a hora certa

Aproveite o fim da vida

Pois a seta é a meta.

Esqueça seu passado

Está aberto seu caminho

Abra seu coração

E sorria

Pois até a aura mais pura do mundo

Bate de frente com um labirinto.

Assinado, seu amigo,

Meu amor impossível!

A Enovi (minha amiga desde o primário) é muito inteligente, lê muito, e nos altos papos que temos, ela ensina algumas das muitas palavras difíceis que aprendi, ela passa o lado poético da vida. Sabe, leitor, mesmo sem nunca ter lido nenhuma obra de poesia de autores como Álvarez de Azevedo e Castro Alves, às vezes também me vêm palavras bonitas na mente, talvez alguns nasçam com um dom divino, e mesmo sem conhecer os significados das palavras, elas chegam, e tenho a certeza que se encaixam perfeitamente com o que quero dizer.

Às vezes falo da besteira que é o tal amor, amor que nunca me é correspondido. Dificilmente gostamos de quem gosta da gente. Para alguns demora, para outros o dia de estar ao lado de quem ama nunca chega. E a culpa é de pelo menos um dos sete pecados capitais. Há quem diga que é belíssimo, droga, ainda não tive esse gostinho.

Minha primeira paixão foi a Jussara, professora do primário. Ela era linda, cabelos castanhos encaracolados e até o ombro. Era alta, e o Cassiano seu aluno predileto (ela quem dizia). Me tratava tão bem, um dia melhor que o outro. Foi minha professora por dois anos seguidos. Ainda era minha paixão quando veio a tragédia. Jussara morreu num acidente de carro com o marido e o filho de três anos. Foi horrível. Os comentários sobre o estado dos corpos eram de dar pesadelos. Fique sem sair do barraco por uma semana. Meus irmãos riam das minhas lágrimas, mas era inútil, nada me continha. Um pentelho de nove anos que chorava pela namorada professora, que piada, mas como sofri naqueles meses, a minha namorada nunca mais estaria ali, para me dizer:

- Bom dia Cassiano, como vai o meu menino?

Nem minha mãe me dizia aquilo, tinha medo de nunca mais ouvir tais palavras. Taí, nunca mais ouvi mesmo.

Dizem que quando um rico se apaixona, vive um mundo de ilusões, cobiça, mentiras e conveniências. Por isso, contemplo minha paixão platônica simples, mas verdadeira por Raquel, a maravilhosa morena de olhos esmeralda, olhar profundo que esconde um passado de muitos mimos, e um futuro de muitos tiros e sangue.

quarta-feira, 12 de março de 2008

O nascimento dos Sete Cavaleiros do Apocalipse


A época mais feliz da minha vida foi entre os sete e os doze anos, meia década de pura alegria, diversão, descobertas, e símbolo de uma grande amizade. Nossa periferia fora esquecida pelas grandes autoridades. Nosso mundo de fantasia abandonado, onde só Deus era a proteção. Em meio à desigualdade, sem luxo em meio ao lixo, crescíamos, crianças que sonhavam com brinquedos comprados, tristes, por muitas vezes passar o Natal em branco, sem festa, sem presentes, construindo seus meios de diversão.
Carlitos, Aragon, Lê, Gil, Rodolfo, Ricardo e o Cassiano, esse que vos escreve.

Crescemos juntos, a diferença de idade era pouca entre todos, nos tornamos amigos nas brincadeiras de rua, tornando-nos inseparáveis. Algumas vezes chegamos a brigar, de rolar no chão, Ricardo gostava de comandar e às vezes disputava no braço, mas nada que uma noite de sono não o fizesse esquecer.

Fizemos um pacto de amizade, como um filme a que assistimos certa vez. Como vivíamos ralados, com machucado por todo o corpo, e ninguém teve moral de cortar o dedo, só tiramos a casquinha das feridas (Nojento isso, hein! Aposto que acabou de fazer uma cara feia e deu risada por ter arrancando muitas casquinhas de machucado também!). Então juntamos os cotovelos, joelho, dedão do pé e fizemos o pacto. Nos reuníamos na rua mesmo, até que o Gil construiu o clube, um amontoado de madeira no campinho. Seria a nossa maior realização, algo só nosso.

Descobrimos a maldade, e que o mundo não se limitava somente ao nosso bairro. Apesar de muito unidos, cada um com sua personalidade, trilhou seu caminho. Sonhos, todos tinham, e eram perfeitos, mas o dia-a-dia os foi destruindo aos poucos. É preciso ser forte, quem conseguiu passar por todo o aprendizado das periferias e das maldades da favela e saiu ileso ou com apenas arranhões, é sobrevivente e vencedor.

Uma vez fomos à igreja, e o padre falava sobre o apocalipse. Não entendemos nada, aliás, só fomos aquele dia por anunciarem a entrega de doces no final da missa, mas concluindo, a gente gostou mesmo foi do nome “apocalipse”. Era forte, e o padre falava com tanta importância! Assim que ouvimos olhamos uns para os outros, olhos que brilhavam, acabavam de ter a mesma idéia.

- Seremos os Sete Cavaleiros do Apocalipse, disse o Carlitos.

Era o máximo, acreditei ter me tornado mais importante pelo nome que o grupo recebera, não somente eu, todos nós começamos a andar com os peitos estufados, cabeças erguidas, andando lado a lado, para fazer pressão nos outros garotos (ganhar fama de poderosos, como um grupo forte e temido pelos outros, era nossa meta inconsciente). Uma comédia.

Hoje lembro da cena e tenho vontade de rir, éramos pivetes de 7, 8 e 9 anos usando roupas feitas pela costureira, nossas mães, é claro. Eram shorts curtos, com elástico na cintura, camisas de botão abertas até em baixo, algumas listradas, outras xadrez, de bolinha, gola de camisa de gente grande e nos pés chinelo de dedo Havaiana (na época acredito que usavam o slogan “As mais baratas”, pois todo pobre tinha uma). Os penteados deixavam nossa marca, o Lê e o Aragon usavam o cabelo de lado, um era liso e o outro encaracolado. O Gil e o Ricardo pareciam um dos Jackson Five com seus black powers. O Rodolfo tinha o cabelo encaracolado, demorava a cortar e pareciam molas. O meu cabelo eu gostava comprido, até chorava quando minha mãe brincava que ia cortar. O Carlitos tinha o cabelo bem enroscado, sempre rente à cabeça, pois a mãe dele cortava, para evitar os piolhos.

Era uma época fácil de se divertir, cada menino tinha seu carrinho de rolimã. Apostávamos corridas em descidas, desfilando pela favela com os carrinhos personalizados, o meu tinha um adesivo dos Caça-Fantasmas, a frente pintada de azul, era chapado! Não sabíamos o que era o mundo e o país. Guerra, só as do bairro, que na época eram muito poucas, algo para despertar a curiosidade. Um filme passageiro. Depois tudo voltava para os mesmos lugares.

Assim eram os Setes Cavaleiros do Apocalipse, os grupos mais famosos do pedaço. Moleques que impunham respeito sobre os outros. A pivetada tinha inveja da gente, pois sempre estávamos unidos, até na hora das brigas, tristezas, e principalmente das alegrias. Aprendi que jamais levaríamos a vida, mas sim que seríamos levados por ela quando menos percebêssemos.

terça-feira, 11 de março de 2008

Quando um mano morre


Quando um mano morre, a gente fica mal e não sabe muito o quê fazer.

Na periferia a gente tem esse sentimento uma porção de vezes, e mesmo não contando muita idade, podemos contar muitos amigos falecidos.

Ninguém decide como morrer, mas quando decidimos nossas rotas, decidimos nosso caminho e nosso futuro é o reencontro. Ficamos tristes, bate um sentimento de vazio, ódio, revolta, vingança e medo.

Quando um mano morre, eu faço poesia!

Mais um assassinato
No bairro do Rosa.
Foi um adolescente
Colega de escola
O motivo, a verdade
Ao certo não se sabe.

Foi a sangue frio,
Dois pivetes e um fuzil.

O sangue esbanjava
A multidão acumulava.
No dia seguinte muita gente seguia
Alguns choravam
E outros sérios ficavam
Uns eram amigos
Outros conhecidos.

Aqueles que riram,
Com certeza nada viram
Não eram da família
Muito menos um amigo.

Juventude transviada,
Adolescentes sem palavra
Vão morrendo a cada dia
Milhares de jovens sem vida
Cuja mente já está vazia

Ao mano Boy!

Nem sempre conheço os mortos que caem na minha frente, mas, mesmo assim, sinto desejo de fazer uma homenagem! Só Deus pode nos julgar.

Quinze de novembro
Ele entrou,
Pediu um guaraná,
Talvez fosse o último,
Não podia imaginar.

Chegou de mansinho,
Com cara de anjinho.
Subiu as escadas,
Estava assustado
Quando viu os caras
Quase pulou para trás!
Ainda pediu misericórdia
Mas era tarde.

Foi agarrado pela gola
Tirado da casa
Aos chutes ele desmaia
Tão novinho, coitado!
Não podiam imaginar
Algo de errado
Com certeza está no ar.

Morrer desse jeito
Isso não é normal.
As senhoras ao vê-lo
Só comentavam esses ensejos.
Foi levado para rua
Espancado, pisoteado
Oito tiros na cabeça
Estirado na sarjeta.

A multidão acumulando
Todo mundo só olhando e comentando.
A madrugada chegou
A chuva entornou.
Sua mãe sabe-se lá!
Talvez dormindo
Sonhando com anjinhos,
Sem saber onde anda seu querido filhinho.

A polícia chegou,
No camburão o jogou,
Foi pro I-M-L
Esperar o reconhecimento,
Que a família procure
O menino que não voltou para casa.

Ao mano sem nome.


Quando o mano Lê morreu senti a maior das dores do mundo.

Queria fugir daqui, entrar num túnel sem fim, viajar numa galáxia bem distante, esquecer de tudo o que está acontecendo, só não queria presenciar mais nada, só não queria ficar ali!

Era fim de tarde quando eu chegava do trampo, duas viaturas me pararam, pediram os documentos e comentaram do assassinato de um jovem. Perguntaram-me se eu não havia visto nada de suspeito, fiquei curioso, afinal quem teria sido a última vítima do momento, com certeza deve, ninguém morre por acaso. Que pensamentos os meus! Às vezes esqueço como é o mundo em que vivo, a maioria tem esse como o primeiro pensamento quando ouve de alguma morte na periferia. Mal sabia eu que ali a poucos metros estava meu amigo Lê. Ainda na descida para chegar no local do assassinato avistei Nay, que veio desesperada ao meu encontro. Meu coração disparou, pensei logo nos irmãos. Minhas pernas paralisaram, e como pressentimento, lembrei do Lê. Nay chorava desesperada, e puxava minha mão. Eu não queria segui-la, mas quando dei por mim, já estava frente a frente com meu mano desfigurado pelas balas, e a caneta na mão. Ajoelhei-me próximo ao corpo e fiquei estático, o sangue empoçado me parecia impossível ser dele. Lembrei de quando éramos crianças e os olhos dele se enchiam de lágrimas quando ouvia um trovão, ele lembrava do irmão e dizia sobre o medo da morte.

Essa foi pra você, irmão!

Meu passado é distante
Lembranças
Um lugar seguro
Cai à chuva lava a alma
Vem o sol torra a palma
Bala maldita
Tristeza infinita
Foste simples em vida
Saudade não alivia
O ronco daquela moto
Como o barulho do trovão
Lembro-me daquela flecha
Que te arrasou, meu irmão.

Não caiam lágrimas agora
Seja forte, meu caro espelho!
Protesto em silêncio
Todos choram no momento
O tempo
O sentimento.

Ao mano Lê

segunda-feira, 10 de março de 2008

Quando o Sol nos acorda


Esta manhã, eu acordei com um lindo raio de Sol, que atravessou por um buraco no teto, feito por uma bala perdida.

Eu gosto de acordar e admirar o dia bonito que nasce, isso me acalma um pouco, faz esquecer por alguns instantes a vida loka, as tretas do dia-a-dia.

É mano; a vida possui uma porção de atropelos, e eu tenho que me preparar para enfrentar o sistema!

Acho que ainda não me apresentei direito, vou tentar pela parte mais fácil! Cassiano é meu nome, graças à minha mãe, que não tinha outro nome em mente quando nasci. Eberaldo, Clorisvaldo, Elioenay e Casimiro, meus irmãos tiveram menos sorte ainda, mas que importância tem isso, nenhum ser humano dessa morada em que vivo está satisfeito com nome, cabelo, altura, ou mesmo gordura, como diz a senhora dona do meu lar. Vai ver isso é mais um mal dos seres humanos.

Aqui no bairro tudo é capaz de virar um rap na boca de alguém, saca esse versinho feito na madrugada da semana passada:

“Da janela do meu quarto

Dividido com mais quatro,

Vejo um assassinato.

Foi mais um entre os mil,

Do ano dois mil

Não é primeiro de abril’’

sexta-feira, 7 de março de 2008

Aprendiz de sonhador



Contar histórias parece fácil. Narrar a realidade doi muito.

No jardim das Rosas contamos histórias narrando realidades.

Bom dia mano, bom dia Jardim das Rosas.

Olá, amigo!

Sou Cassiano, um mano de fé que vai contar a sua história! Moro no Jardim das Rosas, e é daqui que também irei narrar uma emocionante história.
O que se passa na mente dos jovens da periferia?
As revoltas, os sonhos impossíveis, a descoberta do mundo por duros caminhos das palavras, e a destruição do dia-a-dia.

Sou filho de uma geração que me julga incapaz de assumir meus próprios erros, subjugando meus atos e minhas decisões. Sobrevivendo num meio violento e enxergando a parte boa da história vou trilhando meu caminho.
Essa história é dedicada aos muitos jovens que tiveram suas vidas destruídas, dando inspiração aos muitos versos que nasceram.
Meus amigos se tornaram personagens de contos violentos que servem de exemplo. A história da minha vida se parece com a de muitos jovens do mundo, e disso não posso me orgulhar. Tenho aventuras, romances, tragédias e um final como o de alguns jovens. Mas esse, você, meu caro leitor, só vai descobrir quando ler até o fim a história do “maravilhoso” Jardim das Rosas...
Aqui, os versos vão nascendo em nossas mentes, dando vida às situações do dia-a-dia. Declaramos nossas angústias e as injustiças pelas quais somos obrigados a passar. Alguns desses versos se transformam em rap, a nossa música raiz, a música que a nova geração nasce ouvindo, nossa poesia ritmada, nosso cotidiano escrito linha após linha. Alguns dizem música de ladrão, outros para mentes vazias. O rap é nossa música de conscientização, que alerta sobre as crueldades que o amigo sofre e não nos deixa esquecer como é difícil o nosso cotidiano; É nossa prece, nosso pedido aos céus para que tudo mude um dia...

“É tanta desigualdade, mas eu tenho fé.
Olhai, senhor, esse povo sofrido...”