quarta-feira, 26 de março de 2008

Elvis não morreu

Mais uma rosa derramava o sangue ainda na flor da idade. Eis o sangue de mais um mano meu!

Elvis era um moleque esperto, de 16 ou 17 anos, curtia rock, e tocava numa banda chamada Metal Ícaros. Andava com um violão pra cima e pra baixo, depois comprou uma guitarra e já tocava pra caramba. De vez em quando parava em frente a Nossa Senhora de Fátima, igreja do bairro onde muitos se encontravam, e tentava tirar a nota de novas melodias. Os pais foram embora para Goiás, mas ele acreditava que o lugar dele era ali junto da galera que ele considerava como irmãos e principalmente por ter a certeza que não se adaptaria numa cidade menor no interior.

Por uns tempos andou “curtindo” a vida ao extremo, fumava, bebia, curtia várias baladas. Com a galera do rock freqüentou muito a Galeria do Rock no centro da cidade. Tava sempre com uma camisa preta da banda Angra, era quase sua marca registrada. A língua meio presa também era sua característica, chegava a gaguejar se ficava nervoso, mas não abaixava a cabeça para ninguém. Como a maioria dos jovens daqui, não acreditava que seria derrubado facilmente. Ele tinha muitos amigos, mas isso eu só descobri no infeliz dia!

Elvis adorava a brincadeira com seu nome: Elvis já morreu, Elvis não morreu. Todos cansaram de ouvir essas frases de sua boca. Era engraçado ter um amigo chamado Elvis que, ainda por cima, tocava guitarra e violão!

Por conta das correrias diárias, fazia tempo que eu não cruzava com esse mano, mas tava na memória sua cara de menino com medo! Era assim que eu sempre o via. Certa vez Nay fez uma peça de teatro na igreja, Elvis e sua irmã Sheila também participaram, pois às vezes freqüentavam o grupo de jovens. A peça, para variar, foi escrita por Nay e relatava o caso de um jovem que se envolvia com drogas, dívidas e acabava morrendo. Elvis era esse tal personagem chamado Gabriel. Conseguiram descolar até um caixão de madeira feito para as festas de haloween no velho Tenente. Um dos colegas tinha uma filmadora e o Elvis se enfiou dentro do caixão para representar a cena final. Parecia morto de verdade, isso dentro da igreja, ainda com as flores da última missa.
Tal cena nunca pareceu provável, pois ninguém do grupo se envolvia nas correrias. Mas depois desse tempo, Elvis e seus amigos sumiram da igreja. Nay vivia falando neles, que agora só queriam saber de farra, sabe-se lá o que andavam aprontando. O zé povinho já tava comentando. A imaginação dos fofoqueiros voava alto, se pá, já era até aviãozinho na língua desse povo!

Dizem que ele começou a se envolver com uma ex-mina de ladrão! Furada, e os chegados dele ainda advertiram, mas moleque novo, já viu, parece bobo quando se trata de mulher. A longa história que decorreu depois dos primeiros vacilos nem vou contar, vou direto à parte que gostaria que soubessem.
O Rodrigo, um dos meus manos, bateu lá em casa com aquela cara de pavor, branco que nem papel. Era um dia ensolarado, por volta das 13 horas; olhei para ele e já senti que vinha bomba.
- Notícia ruim, cara!
- Quem morreu mano? Foi só o que saiu da minha boca, já nervoso de imaginar quem podia ter sido dessa vez!
- Mataram o Elvis!

Putz, leitor, outra facada que levei! O Elvis não era tão próximo como o Lê, mas só por ser um mano querido da minha irmã já merecia mó consideração e revolta. É por isso que esse povo da periferia acaba se tornando tão forte perante tanta desgraça. São feridas que se abrem em diversas partes do corpo, cicatrizam, mas ficam lá sempre, para que possamos lembrar e ficar fortes perante as próximas que conseqüentemente virão.
- Como foi isso, Digão!
- Pegaram eles na covardia, irmão! Tava indo pro Tenente, e resolveu dar a volta pelo beco atrás do J.J. (outra escola do bairro), os meninos já tinham aconselhado para ele não andar por ali sozinho, mas ele não acreditou!
- Mas quem foi o vagabundo!?
-Ninguém sabe! Os moleques estão vendo ainda, disseram que isso não ia ficar barato não!
-Puta, cara, que merda, moleque novo, mó vida pela frente, não aproveitou nada ainda... Mas e aí, quando vai ser o enterro?

Elvis morreu! O Tenente ficou de luto e ninguém teve aula naquele dia. A brincadeira foi usada, pois não havia outras palavras. Os amigos acharam que era brincadeira de novo. Dessa vez não era!
- Amanhã à tarde. A família tá chegando de Goiás. Mas aí, Cassiano, os caras judiaram, bateram pra caramba no Elvis, no mínimo uns três covardes. Depois deram três tiros. Ele se arrastou até a casa do Silas para pedir ajuda, mas nem deu, foi levado pro açougue do Hospital Campo Limpo, e lá deu o último suspiro!

Peguei uma carona com uns manos, já era tarde, passava das cinco horas, uma daquelas tardes que se mostram sinistras quando alguém morre, o vento se ouve, o céu cheio de nuvens escuras anuncia a chuva próxima, todo mundo com cara de revolta e tristeza. Tava cheio o velho São Luiz, os amigos roqueiros compareceram em peso, todos de preto, com faixa na cabeça escrita Elvis. Pelos cantos a galera com os olhos cheios de lágrimas, puta tristeza bateu em mim, mas não chorei. Aproximei-me da sala de velório e os mais chegados estavam debruçados no caixão. Flores amarelas enfeitavam a pequena sala, e o pessoal da igreja ora cantava alguns hinos, ora fazia as orações em memória do menino. O caixão preto, provavelmente da prefeitura, tinha a camisa do Angra, banda predileta dele, por cima uma faixa da banda Metal Ícarus e a palheta dele. Não pude me aproximar de imediato para ver seu rosto, senti uma força que me segurou por alguns minutos. Como eu já devo ter dito em outra página qualquer, a morte não me desce ainda, não compreendo o seu significado e o que acontece depois! Recuso-me a acreditar que tudo vira fumaça e desaparece de repente!
Encarei todos ao redor, todos tinham ao menos uma lágrima escorrendo por entre o rosto. Resolvi ir à sala de velório ao lado, e lá estavam dois irmãos também assassinados, mas havia meia dúzia de pessoas em volta, provavelmente a família. Lá as pessoas não choravam, todos firmes, provavelmente aquelas mortes foram buscadas.

Voltei novamente para o velório e resolvi encarar aquela morte de frente. Me aproximei e somente o rosto de Elvis estava visível pela janelinha, aquele rosto branco agora sem vida nenhuma, com a pele rígida, coberta de hematomas, um olho roxo, a boca machucada. Era a prova do quanto foi espancado. E o pior de tudo, trazia o mesmo sorriso que carregou a vida inteira nos lábios. Mas o que era aquilo? Uma morte como a que ele sofreu, e um sorriso daquele? Aí eu chorei, irmão! Chorei porque duvidei que ele estivesse realmente morto, e que não o veria nunca mais, que não realizaria seus sonhos, que não conheceria o mundo de verdade, que ficou somente naquela periferia, nasceu, sobreviveu e já fora assassinado!

Que realidade desgraçada essa!

Já era tarde e os homens pediram para fechar o caixão. Os três amigos se aproximaram, e começaram a conversar com o corpo. Eles sorriam, prometiam algo para Elvis, choravam ao mesmo tempo, e todos de mãos dadas fizeram alguma jura, que não foi ouvida pelos demais presentes! A última vista em seu rosto e aquela multidão seguiu até a cova. Passamos no corredor de ossos, a vista por todo o cemitério, que estava situado no alto do São Luiz, portanto a visão era privilegiada. Alguns animais pastavam dentro do cemitério. Olha a condição do povo! Buraco já pronto, ao lado cinco covas do dia com flores ainda vistosas, as pequenas gotas já molhavam o rosto de todos os presentes. Alguns amigos olhavam pro céu com um sorriso nos lábios e uma lágrima nos olhos, acreditavam com certeza que ele já estava lá, e esperando por eles. Engraçado, mas todos ali acreditavam firmemente em Deus, e era a única coisa que os confortava. Bateram palmas, cantaram uma música do Legião Urbana, e aplaudiram novamente. Um pássaro apareceu do nada, passou no meio de nós e foi para bem alto e longe de todos. Alguns sorriram e com certeza tiveram o mesmo pensamento que eu. Era uma mensagem simplória de Elvis ao chegar onde quer que tenha chegado. A chuva continuou serena, os homens continuaram a jogar terra, um amigo estava em pranto. Era o rapaz que morava na mesma casa que ele e dizia o tempo inteiro:

- Eu te avisei tanto amigo! Por que você não me ouviu? Por que, cara?

Uma menina chorava muito ajoelhada e fazendo a cena que muitos estavam acostumados, pedindo para não jogar terra, que ele ainda podia estar vivo, que não era justo, que queria ir junto, e tantos outros desabafos que atormentavam sua cabeça. Cada um jogou uma porção de terra com a mão, algumas minas uma flor, e o coveiro fincou a cruz de madeira inscrita com o número de mais uma estatística. Uma coroa de flores ficou por baixo da faixa Metal Ícarus.

Todos, em silêncio, foram se retirando e retornando para o portão principal. Uns pegaram carona, outros o buzão mesmo, todos chegaram com um clima de: falta uma peça em nosso dominó, não dá para jogar essa partida!

Elvis não morreu! Um amigo gritou, e os outros sorriram.

Fui pra casa, e aquelas cenas do dia não me saíram por duas semanas da cabeça. Morte era sempre morte, mas cada velório tinha seu particular.

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