quinta-feira, 29 de maio de 2008

Perdido na noite


Noite fria do Jardim das Rosas


Perdido na noite

Ouvi palmas que expressavam aflição gritou “Cassiano!” Somente uma vez. Nay nem saiu do lugar, disse para eu atender antes que a mãe ouvisse. Uma voz já grossa, apesar da pouca idade, voz marcante que se anuncia de longe.
Você já conheceu alguém com uma voz assim? Que te deixa refletindo sobre o que se passa para ela sair diferente das outras, meio angustiada, do tipo que ressoa no ouvido quando menos se espera. Era a marca registrada do Jobsom...
- Aí! Beleza, cara, tava só passando aqui e resolvi parar, só para dar um oi, eu juro cara...
- Calma, mas eu nem perguntei nada. Firmeza, mano! Há quanto tempo a gente não se tromba, que cara é essa? Tá passando mal? Aconteceu alguma coisa?

O Jobsom estudou comigo na sexta-série, eu passei e ele foi reprovado. A gente se dava bem pra caramba, ele era o artista da sala, seus desenhos eram expostos no mural do colégio, eram espetaculares, a perfeição inacreditável, o cara tinha uma imaginação, fazia caricatura de alguns professores, o retrato perfeito de outros, mas infelizmente era só em artes que ele se destacava. Odiava números, detestava ler e, mais ainda, receber ordens. Andávamos juntos, ele com sua arte, eu com minha poesia, meio que isolados dos outros, nossas idéias eram parecidas, ele mais rebelde do que eu, mas num misto de tudo, tínhamos um ideal de vida diferente da molecada da época, que já era avançada no que dizia respeito às coisas do mundo. Alguns já usavam maconha e se achavam o máximo, querendo tirar a gente, “os caretas”, soltavam a fumaça dos cigarros em nossa cara e pagavam de gatinho. Tinha mina que caía matando pelos caras de “atitude”, os “poderosos do colégio”, e a gente sempre chupando o dedo.

Numa sexta-feira Job chegou de cara fechada, não cumprimentou ninguém como era de seu costume e depois do intervalo ele não disse uma palavra. Resolvemos cabular, mas às vezes era difícil driblar a zeladora. Todos que queriam cabular se escondiam num quartinho de bagulhos ao lado do banheiro. Eles nem pensavam em procurar lá, pois tinha tantos empecilhos que não podia caber alguém, mas os cabuladores profissionais fizeram questão de deixar o local perfeito para as fugas e quase seguro. Quando os professores denunciam, a diretora sai à procura dos cabuladores e revira a escola toda deixando um clima de aventura no ar, aguçando a vontade dos alunos de cometer o pequeno delito mais vezes. Mas creio que não fizemos falta naquele dia, e ninguém saiu à caça. Job não queria chorar na sala, ele odiava chorar perante alguém, não queria responder perguntas nem dar satisfação, mas na minha frente ele chorou e não se preocupou em secar as lágrimas. Havia recebido uma carta:

“É com pesar que pego nesta caneta para dar a infeliz notícia, meu querido sobrinho, agora terás que enfrentar as durezas do mundo sem o apoio de seu pai...”.
As lágrimas desciam com mais rapidez nesse momento.
“Covardes assassinaram seu pai na noite de sábado num bar aqui perto, avise sua mãe e faça o possível para vir ao enterro e dar o último adeus. Não é com alegria que me despeço, agüenta as pontas aí, seja forte agora e até a hora do reencontro”.
Ao término da carta, ele tinha os olhos tão vermelhos que parecia ter fumado uma porção de baseados. O pai de Job já era separado da mãe havia dois anos e mandava uma carta de seis em seis meses. Estava morando no interior de São Paulo.

- Minha mãe quebrou quase tudo dentro de casa, e olha que nem tínhamos tanto, a estante ficou zerada, sabe, Cassiano, eu nem me ligava muito no velho, era sempre aquela distância de pai e filho que a gente já conhece, mas cara, eu nunca mais vou receber uma carta do velho, nem vou encontrá-lo, e o pior é saber que foi um vagabundo que o matou, por motivo que ninguém sabe ao certo, pô, cara, é de doer a alma, se eu tivesse uma arma agora e soubesse o filho-da-puta que fez isso, eu não seria dono do meu corpo, ia fazer miséria naquela cidade. E agora? Aonde a gente vai arrumar grana para as passagens? Minha mãe não tem poupança, nem guarda dinheiro assim, não vou poder nem dar o último adeus pro meu pai...

Ele desabafou e chorou como uma criança quando leva um tapa. Job tinha levado um tremendo tapa que ia deixar marcas profundas. Sua mãe nunca mais foi a mesma. Nunca foi de passar a mão na cabeça dos filhos, mas ficou ainda mais seca e fria por dentro, sua vida sofrida deixava marcas no rosto cheio de correias.

A sobrancelha grossa quase ligada uma na outra, o olhar expressivo, corpo meio franzino, só usa roupas largas que é para disfarçar a gordura, como diz ele. O boné que não sai da cabeça, encardido já está. Depois subimos para a sala de aula, ao entrar o olhar irônico de alguns garotos irritou-o, a professora de história deu de fazer leitura justo naquele dia, e foi pedir logo para o Jobsom. Num tom bem ignorante ele respondeu:
- Eu não vou ler porra nenhuma!
Logicamente que ela se irritou e retrucou:
- Quem é o garotinho sem educação para falar desse modo?
- O garotinho mal educado é o bastardo do Jobsom, fessora!

Quem disse isso foi o pagapau do Edson, um dos moleques que ele tinha a maior bronca na sala. Jobsom se enfureceu de tal forma que voou para cima do Edson na mesma hora, a professora desesperada chamou a diretora, enquanto isso na sala todos gritavam em coral:
PORRADA
Fiquei sem saber o que fazer, e ao tentar separar a briga acabei levando uma porrada, da qual só senti o tombo no chão. O resultado dessa briga foi à suspensão de duas semanas. “Só para esfriar as cabecinhas dos briguentos”, disse a diretora, dona Célia.

Ele repetiu aquele ano e foi aí que nos desencontramos. Não morar no mesmo bairro causa esses desencontros nas nossas vidas. E agora ele estava ali na minha frente, me pedindo ajuda.
Naquela noite Job estava muito deprimido, abatido, tinha brigado com a mãe, não queria voltar para a escola. Tava novamente com medo dos professores, da diretora e dos alunos, medo de machucar alguém, de falar ou fazer algo que não devia, aflito com olhos lacrimejantes e voz trêmula, não sabia onde pôr as mãos, um adolescente com problemas e pior, drogado. Ele disse não saber o que fazer estava cansado da vida e de tudo, e olha que ele só tinha dezessete anos. Não era a primeira vez que brigava na escola:
- Quero mudar de sala, de horário, de escola, sei lá! Não quero encarar novamente aquela diretora. Aí Cassiano, eu não quero chorar cara! Minha mãe falou que seu eu não voltar a estudar, também não precisava voltar para casa, já era hora de eu me comportar feito gente, falou uma pá para mim. Ela já tá enjoada de reclamar, mandar eu parar de sair com os mano lá da área. A velha já tá ficando louca, se lembra dela, né? Tá acabadona agora, só correia na cara, acho que ainda mato a coitada de desgosto, putz, cara! Acho que já estou é perdido mesmo, como ela não cansa de me repetir.

...

Ele esfregava as mãos, suava frio, não conseguia ficar parado...
- Você nem esperava que eu aparecesse por aqui, não é mesmo, quando você me imaginou falando tudo isso? Fala com a diretora para mim, me dá uma força aí, irmão!
- Como eu posso te ajudar, cara, eu não consegui sintonizar ainda qual é o seu drama!
- Hã? Já te enchi o bastante, né, irmão!
- Não, que é isso...
- Já é tarde mesmo, eu vou nessa...
- Mas cara como eu posso te ajudar, você nem explicou qual é o drama, o que tem a diretora nessa estória?
- Você ajudou muito, irmão, me ouviu como há muito tempo ninguém me ouve! A gente se encontra, se eu conseguir mudar, achar uma nova estrada, a gente se vê lá... Que é isso, cara, olho cheio d’água, tá parecendo minha mãe depois de horas de briga, tá ligado que eu não passo dos vinte, né, mas não liga não, todos morrem um dia.
- Pô, irmão, não antecipa sua morte, seja lá o que te aflige tanto.
- Falando difícil, meu irmão, tá aproveitando as aulas, hein...! Eu também já tô chorando, olha, somos dois idiotas mesmo, o tempo passa e não mudamos... Cara, eu tô frito!
- Deixa eu terminar, Job, seja lá o que te deixou nesse estado, cara, não deixa te destruir mais, pensa na sua velha, ela vai ficar sozinha..
- É tudo o que ela quer...
-Não, eu sei que não, nenhuma mãe quer isso, se levanta cara, aquela porra fez isso com você, não deixa ela te levar para uma cova.
- Valeu, irmão, você deu uma força, tchau! Vai dormir, sonha com os anjinhos!! Ahahaha...
E lá se foi o cara na noite de segunda-feira. Sem destino, seu boné encardido, suas roupas largas, sem rumo pela viela. Só queria desabafar, não era coincidência estar passando por ali, lembrou de nossa amizade, talvez a única que ele ainda tenha, afinal os amigos são as únicas coisas que realmente escolhemos, e alguns se tornam verdadeiros e até eternos.

sábado, 24 de maio de 2008

Igreja Nossa senhora de Fátima


Quando o céu vira inferno

Um cabrito aconteceu nessa semana, e me deixou puto. Ricardo é meu mano, e jamais quis ver o seu mal, mas o cara procura, vai gostar de confusão lá nos diabos. E quem sofre nessas horas só podia ser a mãe, que fica angustiada ao ver o filho nessas situações. É como o diz o ditado: parente é serpente, não se escolhe e morde a gente (na verdade eu juntei dois ditados que conheço).

Dona Fátima é a mãe de Ricardo, e vai a uma igreja evangélica sempre. Algumas pessoas mudam de religião para descobrir a sintonia perfeita com Deus entre a terra e o céu, outras, para ficar de bem consigo mesmas, algumas acham que é sinônimo de salvação. Muitas vezes mudar de religião é uma fuga para a falta de respostas, mas o importante é que o Deus é único, consagrado, e, quando se crê, ele é capaz de realizar verdadeiros milagres, e o importante de tudo é ser capaz de fazer com o próximo somente aquilo que quer que seja feito com você, e amar a Deus sobre todas as coisas. Fala aí, leitor, as aulas de religião fizeram efeito, mas não vale ficar só no papel, isso evita muita morte, valeu!

Muitos não acreditam no que jamais viram, não existem provas para o sobrenatural. Não freqüento missas, nunca rezei um terço, apesar dos muitos pedidos de minha mãe, mas acredito na força desse único Deus que me guia e protege. Rodrigo é um amigo que começou a freqüentar a igreja e se tornou fervoroso, assíduo nas leituras ele está aprofundando seus conhecimentos. Hoje, ele diz que o Espírito Santo dominou seu ser, e as palavras com que ele defende sua religião, suas verdades e seus mitos são impressionantes. Às vezes ele não entende alguns significados embutidos nas palavras e códigos da Bíblia, que assim como sonhos precisam de decifração. A falta de conhecimento faz as pessoas ignorantes, e acho que também é assim nas religiões, mas o Rodrigo tornou-se mais sábio por saber distinguir alguns enigmas da bíblia.


Não sei como nem por quê, mas Ricardo roubou uma Sete-Gala, poderosa moto objeto de desejo de muitos. Viram quando ele desceu para uma boca. Era o que eu temia, devia estar com uma grande dívida e só um grande roubo poderia resolver o problema. Meu mano estava ferrado, quem o salvaria agora? Respondido, leitor. Ninguém! Ele entrou e tinha que sair dessa, sozinho, para aprender com os erros o caminho certo, essa era a lei, sempre sozinho, cara, sem amigos para essa droga. Advogado, só o do diabo.


A mãe do Ricardo voltou à igreja de Nossa Senhora de Fátima, na qual ele foi batizado. A pobre subiu de joelhos as escadas com o véu na cabeça, rezava sem parar, e um mar de tristeza corria em sua face enrugada pelo sofrimento. Fátima não se consolava. Sem saber para onde correr, que religião seguir para seus medos encobrir e suas verdade destruir, ela rezou ao pé da santa, que a olhava com a ternura de uma mãe, os anjinhos do altar ao seu redor lhe secavam as lágrimas que não cessavam. A alta superstição, em relação a religiões, confundia sua crença e fazia dona Fátima explodir de dúvidas e remorso por acreditar ser a única culpada pela situação de seu filho. Ela ouvia os comentários na rua e também por onde passava, e isso a deixava deprimida.

Fátima teve a visão do diabo lhe batendo à porta, entrando sem ser convidado, deitando-se ao lado de seu filho querido. Seu desespero se tornou maior quando ouviu a voz maligna murmurando, com as mãos seguras em Ricardo, dizendo que agora ele seria seu filho também. Ouviu gritos e gritou junto, sentiu o calor do fogo que lhe rodeara e seu pequeno Ricardo ser dominado pelo Demo. Sentiu-se elevada e jogada num grande precipício, com espetos pontiagudos envenenados lhe corroendo o corpo e a alma. A face de seu filho Ricardo, numa grande ilusão, gargalhava para ela, e num grito de terror que dera fora acudida por padre Miguel, já desmaiada com um crucifixo nas mãos apertado junto ao coração.

Fátima sofreu parada cardíaca e foi levada às pressas para o hospital dos pobres, o assim chamado hospital Campo Limpo.

Onde se encontrava Ricardo? Só Deus sabia. Os vizinhos foram avisados, pois era muito querida, porém sem parentes conhecidos. Na favela éramos todos como uma grande família. Quando somos sozinhos e moramos num local onde ter conhecidos pode salvar sua vida ou simplesmente destruí-la, ficamos à deriva, com medo de tudo. É numa hora assim que aparece o verdadeiro amigo, e dona Jacinta ficou com Fátima ouvindo todas as suas lamentações, mas, como parentes traíras, também houve os que fugiram sabendo o quão santo era o filho da falecida. Eles tinham medo do que podia acontecer depois.

Fátima jamais viu nada que incriminasse Ricardo, mas seu dom de mãe já pressentia o caminho que seu filho escolhera. Em nome do grande amor que sentia, renunciava à própria vida.

É o mar que se torna presente
Formado pela dor
De um seio sem cor.
Coração latejante que não se agüenta em pranto,
Coração de mãe,
Que chora calada em busca de sua espada.
Maria e seu filho querido
Eternizado
Pela morte sofrida.
Lágrimas de mãe aflita,
Lágrimas de uma longa vida.
Não chora agora, minha mãe querida,
A criança cresceu,
Seu caminho escolheu,
Para o amanhã que Deus deu.
Desabrocha e floresce.
Minha mãe não mais padece.
És o sol da minha vida
Levanta e retoma a vida.

Não viveu. Fátima teve o óbito declarado às seis da tarde. Foi para um plano melhor, e se o céu existe talvez ela esteja a caminho. Em seu último dia de vida não teve seu apoio precioso, o filho que criou com tanto medo do mundo. Sofreu calada, pois seu sofrer maior já havia sido derramado por inteiro no chão da capela.
Se Ricardo tinha algo que o impedia de realizar seus planos, hoje ele perdeu, e tomará seu rumo sem medo do amanhã e sem ter que dar satisfação a qualquer pessoa. Sozinho, agora é ele o dono do mundo, e terá como proteção um prateado e suas palavras.

terça-feira, 20 de maio de 2008


Pai nosso


Aos meus dez anos, uma das minhas avós me ensinou a rezar. Pouco antes dela morrer, pediu que sempre que estivesse sozinho, triste, precisasse de alguma coisa, e principalmente quando algo fosse atendido, eu devia rezar e agradecer.
Daí para cá sempre rezo pelos manos, peço a Deus que cuide da favela, pois ninguém está livre da guerra, peço para não presenciar mais mortes, mas o Grande talvez não tenha tempo de me atender. Acredito que haja excesso do mesmo pedido, e Ele me escolha para ficar para depois. Como diria vovó, os mais necessitados primeiro.

Que meu pai lá do céu
Olhe pelo povo sofrido,
Cuide do réu
Realize o pedido,
Ouça os tiros,
Salve os perdidos.
Calçadas ensangüentadas
Vidas despedaçadas!
As mães desesperadas,
Moleque de olho arregalado,
Silêncio guardado,
Olha a bala perdida!
Uma cabeça abatida.
No silêncio se foi
O órfão de pai e mãe.
Mais comida para inseto
Mais trabalho para coveiro
Acontece no mundo inteiro.

É difícil ouvir um professor chato, decorar fórmulas malucas que nunca sabemos quando e como vamos usar. Fazer decoreba para a prova chega dói, aí, chega o ponto em que temos que apelar para os céus. Essa oração foi ensinada para quem já está fudido, porque nunca é tarde para tentar a última salvação:

Pai nosso dos estudantes
Mestre nosso que estais na sala
Não ficais zangado
Multiplicada seja a sua paciência
Venha a nós o vosso espírito
De estudante adormecido
Seja feita a vossa vontade
Tanto na classe quanto na nota
O dez nosso de cada dia
Nos dai hoje
Perdoai as nossas bagunças
Assim como nós perdoamos nossos professores
Nunca deixei-nos cair em segunda época
E livrai-nos da reprovação
Amém

Vale a pena rezar na hora do apuro, mas nunca esqueça a cola nossa de cada dia, o que também não garante, mas dá uma segurança. Dizem que quem cola não sai da escola, mas você já percebeu que depois de uma cola bem-feita a gente acaba decorando a matéria e nem precisa na hora da prova. Confessem, quem nunca colou nessa vida que atire a primeira pedra. Parece um imã que puxa, já cheguei a colar sem precisão, eu tive um professor chamado Moacir que sempre dizia ...