sábado, 24 de maio de 2008

Quando o céu vira inferno

Um cabrito aconteceu nessa semana, e me deixou puto. Ricardo é meu mano, e jamais quis ver o seu mal, mas o cara procura, vai gostar de confusão lá nos diabos. E quem sofre nessas horas só podia ser a mãe, que fica angustiada ao ver o filho nessas situações. É como o diz o ditado: parente é serpente, não se escolhe e morde a gente (na verdade eu juntei dois ditados que conheço).

Dona Fátima é a mãe de Ricardo, e vai a uma igreja evangélica sempre. Algumas pessoas mudam de religião para descobrir a sintonia perfeita com Deus entre a terra e o céu, outras, para ficar de bem consigo mesmas, algumas acham que é sinônimo de salvação. Muitas vezes mudar de religião é uma fuga para a falta de respostas, mas o importante é que o Deus é único, consagrado, e, quando se crê, ele é capaz de realizar verdadeiros milagres, e o importante de tudo é ser capaz de fazer com o próximo somente aquilo que quer que seja feito com você, e amar a Deus sobre todas as coisas. Fala aí, leitor, as aulas de religião fizeram efeito, mas não vale ficar só no papel, isso evita muita morte, valeu!

Muitos não acreditam no que jamais viram, não existem provas para o sobrenatural. Não freqüento missas, nunca rezei um terço, apesar dos muitos pedidos de minha mãe, mas acredito na força desse único Deus que me guia e protege. Rodrigo é um amigo que começou a freqüentar a igreja e se tornou fervoroso, assíduo nas leituras ele está aprofundando seus conhecimentos. Hoje, ele diz que o Espírito Santo dominou seu ser, e as palavras com que ele defende sua religião, suas verdades e seus mitos são impressionantes. Às vezes ele não entende alguns significados embutidos nas palavras e códigos da Bíblia, que assim como sonhos precisam de decifração. A falta de conhecimento faz as pessoas ignorantes, e acho que também é assim nas religiões, mas o Rodrigo tornou-se mais sábio por saber distinguir alguns enigmas da bíblia.


Não sei como nem por quê, mas Ricardo roubou uma Sete-Gala, poderosa moto objeto de desejo de muitos. Viram quando ele desceu para uma boca. Era o que eu temia, devia estar com uma grande dívida e só um grande roubo poderia resolver o problema. Meu mano estava ferrado, quem o salvaria agora? Respondido, leitor. Ninguém! Ele entrou e tinha que sair dessa, sozinho, para aprender com os erros o caminho certo, essa era a lei, sempre sozinho, cara, sem amigos para essa droga. Advogado, só o do diabo.


A mãe do Ricardo voltou à igreja de Nossa Senhora de Fátima, na qual ele foi batizado. A pobre subiu de joelhos as escadas com o véu na cabeça, rezava sem parar, e um mar de tristeza corria em sua face enrugada pelo sofrimento. Fátima não se consolava. Sem saber para onde correr, que religião seguir para seus medos encobrir e suas verdade destruir, ela rezou ao pé da santa, que a olhava com a ternura de uma mãe, os anjinhos do altar ao seu redor lhe secavam as lágrimas que não cessavam. A alta superstição, em relação a religiões, confundia sua crença e fazia dona Fátima explodir de dúvidas e remorso por acreditar ser a única culpada pela situação de seu filho. Ela ouvia os comentários na rua e também por onde passava, e isso a deixava deprimida.

Fátima teve a visão do diabo lhe batendo à porta, entrando sem ser convidado, deitando-se ao lado de seu filho querido. Seu desespero se tornou maior quando ouviu a voz maligna murmurando, com as mãos seguras em Ricardo, dizendo que agora ele seria seu filho também. Ouviu gritos e gritou junto, sentiu o calor do fogo que lhe rodeara e seu pequeno Ricardo ser dominado pelo Demo. Sentiu-se elevada e jogada num grande precipício, com espetos pontiagudos envenenados lhe corroendo o corpo e a alma. A face de seu filho Ricardo, numa grande ilusão, gargalhava para ela, e num grito de terror que dera fora acudida por padre Miguel, já desmaiada com um crucifixo nas mãos apertado junto ao coração.

Fátima sofreu parada cardíaca e foi levada às pressas para o hospital dos pobres, o assim chamado hospital Campo Limpo.

Onde se encontrava Ricardo? Só Deus sabia. Os vizinhos foram avisados, pois era muito querida, porém sem parentes conhecidos. Na favela éramos todos como uma grande família. Quando somos sozinhos e moramos num local onde ter conhecidos pode salvar sua vida ou simplesmente destruí-la, ficamos à deriva, com medo de tudo. É numa hora assim que aparece o verdadeiro amigo, e dona Jacinta ficou com Fátima ouvindo todas as suas lamentações, mas, como parentes traíras, também houve os que fugiram sabendo o quão santo era o filho da falecida. Eles tinham medo do que podia acontecer depois.

Fátima jamais viu nada que incriminasse Ricardo, mas seu dom de mãe já pressentia o caminho que seu filho escolhera. Em nome do grande amor que sentia, renunciava à própria vida.

É o mar que se torna presente
Formado pela dor
De um seio sem cor.
Coração latejante que não se agüenta em pranto,
Coração de mãe,
Que chora calada em busca de sua espada.
Maria e seu filho querido
Eternizado
Pela morte sofrida.
Lágrimas de mãe aflita,
Lágrimas de uma longa vida.
Não chora agora, minha mãe querida,
A criança cresceu,
Seu caminho escolheu,
Para o amanhã que Deus deu.
Desabrocha e floresce.
Minha mãe não mais padece.
És o sol da minha vida
Levanta e retoma a vida.

Não viveu. Fátima teve o óbito declarado às seis da tarde. Foi para um plano melhor, e se o céu existe talvez ela esteja a caminho. Em seu último dia de vida não teve seu apoio precioso, o filho que criou com tanto medo do mundo. Sofreu calada, pois seu sofrer maior já havia sido derramado por inteiro no chão da capela.
Se Ricardo tinha algo que o impedia de realizar seus planos, hoje ele perdeu, e tomará seu rumo sem medo do amanhã e sem ter que dar satisfação a qualquer pessoa. Sozinho, agora é ele o dono do mundo, e terá como proteção um prateado e suas palavras.

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