terça-feira, 18 de março de 2008

Fogos e fogo de São João


Era o ano de 1995, a galera estava alegre, todo mundo organizando as festas juninas: são João, santo Antônio, são Pedro, ninguém sabia quem era o santo do dia. O importante era a festa.
Nessa época ainda havia festas boas no Jardim das Rosas, e essa que vou descrever foi a última quermesse da década.
Dona Jacinta resolveu levar a filharada para rezar um pouco. Ela dizia:
- Cambada de descrente, vocês acham que sem Deus vão chegar a algum lugar? Rezar que é bom ninguém tá rezando, nem na hora de dormir, né? Cai na cama e dorme direto que nem cachorro! Depois não adianta reclamar que não consegue emprego e que as coisas estão difícil!
Clorisvaldo tava meio doente e preferiu ficar em casa de boa e debaixo das cobertas. Era uma daquelas gripes de derrubar leão. Minha mãe encheu ele de chá e deu um Doril.
Após a missa, Joãozinho e eu resolvemos dar um rolê pelo bairro. Fazia uma noite fria, João e eu usávamos jacos grandes de cor escura, era moda na época. Perto do escadão tinha o esqueleto de uma geladeira. O povo jogou algumas muambas e restos de móveis e com a propícia data festiva fizeram uma grande fogueira, e alguns moleques resolveram assar umas espigas de milho nessa churrasqueira improvisada. Enquanto isso, nós desfilávamos pelas ruas, o movimento era calmo a música de fundo já anunciava a festa caipira que aconteceria, mas a mistura de sucessos da rádio também dominava uma parte do tempo.
Uma ventania bateu forte em nosso rosto...
- O que foi isso cara? Que vento forte foi esse?
- Será que vai chover?
- Acho que isso é um aviso, hein mano, tá ligado naqueles filmes de terror que antes de alguém morrer acontece umas coisas sinistras!!?
- Sai pra lá, jaburu, tá doido Cassiano, hoje é noite de festa e eu ainda quero catar uma mina por aí!!
- Tô falando sério, cara, dizem que quando bate esses ventos assim, são as almas passeando pelo Jardim das Rosas, vai ver ficaram sabendo da festa, hehehe!
- Puta! Ou vieram avisar algo realmente! Será, cara??
- Vamos parar com esse papo que tá começando a me dar tremedeira!

João olha para trás despercebido e diz:
- Tem razão, vamos na 12 que lá tá rolando uma quermesse boa também.
De repente arregala o olho e grita:
- Puta, cara, não olha para trás mas corre agora!
- Han??!!
-Vamos ser metralhados porra, corre caralho!
Aquela seria a noite do desespero: 17 manos trabucados. Miniuzzi, metralhadora, pts, 38, calibre 12, pistolas 45, tinha até fuzil AR15, era armamento pesado que desfilava na quebrada, tudo diante dos meus olhos, nunca tinha visto algo igual na vida. Parecia que uma guerra ia acontecer, os malucos de jacão preto e sangue nos olhos. Um frio na espinha me arrepiou todo.
Era a guerra da turma do Rosa com o Macedônia, eles queriam conquistar território, logo pensei!
Fecharam a rua vindo em nossa direção em forma de paredão, lado a lado. Quando o cabeça deu um tiro pro alto, ouvimos tiros em outras partes do bairro, estavam na caça de manos que deviam grana. Começou o tiroteio confundindo-se com os fogos que explodiam em toda a região do Capão Redondo, Campo Limpo e Embu, eram as três regiões que estavam em volta do Jardim das Rosas. Era chegada a hora de fazer a limpa no bairro, de tempos em tempos isso acontecia, sempre corria uma lista dos marcados para morrer. Mas isso tinha que acontecer em plena noite de são João!
Todos corriam desesperadamente. Eu corri para um lado e João para o outro, anunciando para as famílias que deviam se esconder porque os tiros estavam comendo solto. As mães, desesperadas, corriam atrás dos filhos, as crianças brincando na rua estavam prontas para dançar a quadrilha marcada, e todo mundo saía puxando a molecada pelo braço, pelas calças. Tinha criança que não entendia nada, pois os adultos nem olhavam para a cara delas, às vezes nem as conheciam, viam que eram crianças sem adulto próximo e jogavam-nas pelas janelas e portas que se encontravam entreabertas. Eu parecia um furacão de tão rápido que corria, nem me reconheci. João entrou num bar e fecharam as portas em seguida, nem deu para eu entrar também, fiquei com jeito daquele urso bobo do desenho do Pica-Pau que ficava correndo de um lado para o outro na floresta quando entrava em desespero.
Os tiros se confundiam com os fogos e o choro das crianças que não viam seus pais. Então comecei a suar frio ao ver aqueles caras correndo pelos becos, sem saber onde me enfiar. Pulei a janela da casa de uma mulher que soltou um grito desesperado.
- Eu sou da paz senhora, só estou longe de casa também!
Meu irmão Beraldo vinha de algum lugar e passou aquele aperto. Foi enquadrado pelos malandros, que levantaram o boné dele e olharam fixamente nos seus olhos e soltaram a frase de libertação: “Esse tá limpo, pode liberar”.
Não preciso nem dizer o estado que a cueca do mano ficou, chegou em casa branco que nem papel depois do aperto, coração acelerado e tremedeira, quase teve um ataque.
Num intervalo de balas, corri para casa, estava com as portas trancadas e tive que esmurrar e gritar para abrirem, quando entrei vi minha mãe na mesa com pulso ensangüentado; arregalei os olhos e fiquei paralisado de susto.
- A mãe foi baleada, Cassiano, esses filhos da puta não respeitam nem os trabalhadores que estão em casa.
- Foi bala perdida, sossegue!
Minha mãe permanecia séria na mesa segurando a mão com um pano, mantendo-se calma ao dizer:
- Esperem passar essa perdição, os diabos já vão embora, depois vamos ao médico.
A porta se abriu com tudo (um puta chute na pobre porta de madeira), quatro caras invadiram nossa casa, cada um com uma AR15 na mão, Nay desmaiou quando olhou para as armas, e os outros irmãos paralisados de olhos arregalados.
- A gente tá procurando um maluco que deve, ele desceu por aqui!
Apontando para a saída de trás da casa, dona Jacinta disse com a maior frieza:
- Desceu direto, agora saiam, por favor.
- O maluco ta fugindo, vamu atrás!!
Racharam nossa porta com o chute, mais um prejuízo! Casimiro estava com as mãos nos ouvidos para não ouvir os tiros, chorava silenciosamente, só derramando as lágrimas pelo rosto. O caçula tava apavorado mesmo, isso é o que chamamos de traumas na infância! Na casa do lado a vizinha ficou paralisada, não saiu do lugar e não falou nada durante todo o acontecimento.
Um dos caras parou no ponto alto da quebrada, deu uns tiros pra cima e disse bem alto:
- É o seguinte, povão, esse bairro tá dominado, é nóis que manda aqui agora. Somos os reis, e não vai ter mais nenhuma festa, e que ninguém ouse nos desafiar saindo na rua porque isso virou campo de guerra e vamos matar todos os soldados inimigos.
Soltaram umas risadas macabras que ficaram registradas em minha mente.
Clorisvaldo catou uma faca na cozinha e correu para o banheiro. Sentado na privada com o terço numa mão e a faca na outra só sabia murmurar:
- Eu mato eles se aparecerem aqui de novo, eu juro que mato.

Eu não consegui adormecer imediatamente depois de tanta adrenalina, fiquei imaginando o estado do bairro depois dessa pequena guerra. Muitos buracos de bala; sabe-se lá quantos mortos.
Boa noite, Cassiano, mais um dia que acabou.

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