domingo, 9 de novembro de 2008

Descobrindo as lágrimas

O valor da amizade:

As crianças cresceram, viraram jovens com destinos complicados e diferentes. Jogávamos bola na rua, já decidindo a turma, montavam o time dos sem-camisa e dos com-camisa. Como era fácil se divertir, um dia era sempre melhor que o anterior.
Quando a chuva caía, era festa prometida, correr com os amigos pulando poça d’água, tocando campainha das casas da rua de cima. Era emocionante soltar aquele grito com toda a força que se tinha nos pulmões, beber as gotas que caíam do céu, fazer de conta que éramos os donos da rua. O Lê era o meu melhor amigo, sempre estávamos juntos, mas ele não podia ouvir um trovão, o medo se expressava no olhar. Mesmo assim ele engolia calado, todo aquele medo era por causa do Biel, irmão dele, morreu com um raio. Caía uma tempestade, ele correu muito, mas não conseguiu chegar em casa, resolveu parar debaixo de uma árvore para se esconder, esse foi seu erro, foi uma morte feia, e traumatizou o Lê.

Depois da chuva íamos para o clubinho, foi o Gil quem construiu, era de madeira, e ficava no campinho. Contávamos estórias de terror, piada, e uma pá de mentira, o Gil era o campeão, ele fingia que era verdade, e a gente fingia que acreditava, tínhamos entre nove e dez anos, bem espertos, alguns já com a malícia de quem estava perto da adolescência, outros só mentirosos, com tanta fantasia que mal cabia na cabeça. O mais inocente era o Lê, acreditava em tudo, não falava palavrão, nem para ofender a mãe dos outros na hora das brigas, quando a gente mais usava os piores. Ele tinha medo de apanhar em casa, tinha pesadelo com o irmão e acreditava em Papai Noel, mas nunca ganhou nenhum presente, a não ser daqueles palhaços que se fantasiavam na escola, e muito mal por sinal, davam carrinho de plástico, que cortávamos com faca para abrir as portas, e ele dizia:

- São os ajudantes do Papai Noel, ele é muito ocupado.

Foi a época mais divertida da minha vida, deixou boas lembranças, bolinha de gude, taco (hoje sei que é uma espécie de beisebol brasileiro, com quatro pessoas), esconde-esconde, queimada, futebol de botão(tinha até campeonato com os manos das outras ruas, com direito a torcida das irmãs), carrinho de rolimã, mamãe da rua, duro ou mole, rouba bandeira, alerta e tantas outras brincadeiras, até fazenda de vaquinha feita de chuchu e batatinha a gente tinha. Mas com a idade, o mundo dos homens foi chegando, de repente uma dessas crianças poderia ser o nóia da avenida.

Viramos homens, e o Lê não é mais o menino com medo de raios e trovões, aliás, tem medo de pouca coisa, graças ao padrasto, descobriu que Papai Noel não existe. Não tem medo de encarar as pessoas, seja quem for ela. Esse é um erro mortal no mundinho.

Era sexta-feira, ele encostou-se ao muro da escola, quando viu o namorado da ex-namorada do outro lado da rua, e não deixou de encarar o mano, que veio tirar satisfação na mesma hora.
- Tá me encarando por quê? Ta me achando com cara de veado ou desistiu da vida?
- Sai fora, cara, não estou te encarando!

O Lê se sentiu humilhado, o mano tirou e zoou ele no meio da galera.
Depois da tiração, o mano falou que o assunto deveria ser esquecido, mas Lê estava muito puto e disse:
- Isso não vai ficar assim, Fido, qualquer hora a gente se tromba, e resolve essa parada!

Eles ficaram com o assunto guardado, pois mano inteligente não esquece treta perigosa, tenta logo resolver de uma forma ou de outra.
Malditas palavras foram as do Lê. Duas semanas depois, sentou-se na escada da banca de jornal do PC no ponto final e começou a escrever, foram poucas palavras, talvez uma letra de rap, um poema, ou só um desejo. A Nay passou e ele disse:

- Morena, você não anda, desfila.

Ela abriu um sorriso e entrou na escola, ele colocou a caneta na mão esquerda e parou para pensar. Fido chegou, deu poucas palavras e cinco tiros. Meu mano Lê morreu de olhos abertos e a caneta na mão, dois tiros foi no rosto. Nay ouviu os tiros e veio correndo, lá estava o nosso amigo caído, perto da banca de jornal, morto, cheio de sangue!

O maldito Fido fugiu na garupa de uma moto, e nunca mais apareceu no bairro.

Era fim de tarde quando eu chegava do trampo, duas viaturas me pararam, pediram os documentos e comentaram do assassinato de um jovem. Perguntaram-me se eu não havia visto nada de suspeito, fiquei curioso, afinal quem teria sido a última vítima do momento, com certeza deve, ninguém morre por acaso.

Que pensamentos os meus! Às vezes esqueço como é o mundo em que vivo, a maioria tem esse como o primeiro pensamento quando ouve de alguma morte na periferia. Mal sabia eu que ali a poucos metros estava meu amigo Lê.

Ainda na descida para chegar no local do assassinato avistei Nay, que veio desesperada ao meu encontro. Meu coração disparou, pensei logo nos irmãos. Minhas pernas paralisaram, e como pressentimento, lembrei do Lê. Nay chorava desesperada, e puxava minha mão. Eu não queria segui-la, mas quando dei por mim, já estava frente a frente com meu mano desfigurado pelas balas, e a caneta na mão. Ajoelhei-me próximo ao corpo e fiquei estático, o sangue empoçado me parecia impossível ser dele. Lembrei de quando éramos crianças e os olhos dele se enchiam de lágrimas quando ouvia um trovão, ele lembrava do irmão e dizia sobre o medo da morte.

- Eu só não quero sentir dor nesse dia.
Era o que ele dizia já choroso. Puxa vida, o Lê ta morto. Meu peito tava doendo como nunca, eu queria chorar, mas só conseguia espremer a solidão que sentia por dentro. Esse foi o dia em que descobri o valor de uma amizade. Ver um mano estirado com os olhos abertos era muito duro de aceitar. Será que ele sentiu a dor de que tanto tinha medo?

Quero fugir daqui, entrar num túnel sem fim, viajar numa galáxia bem distante, esquecer de tudo o que está acontecendo, só não quero presenciar mais nada, só não quero ficar aqui!

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