sexta-feira, 6 de março de 2009

Quando as palavras decidem o destino...

A história de Raquel

Foi numa tarde de chuva, Raquel se drogou ao máximo numa boca qualquer e apareceu desnorteada, vinha andando pelas vielas como se fosse um zumbi com olhos arregalados.
Ela vinha batendo em todos os portões, chamando a atenção de todos, parecia mesmo que o seu desejo era que todos ouvissem suas declarações. E num grito, assim, de repente, ela disse que não queria mais viver... Meio chorosa começou a soltar palavras de rancor, ódio e arrependimento...

- De que vale essa vida maldita, eu não tenho família, minha mãe é uma vagabunda, meu pai, um pobre bêbado, desgraçado por suas fraquezas, e o dinheiro que tanto desejei, de que vale aqui, se eu não posso sair desse mundinho pobre, essa vida miserável, com tanto esgoto, sujeira, rodeada pela pobreza, eu canseiiiiiii...

E nisso, já gritava aos quatro ventos para quem quisesse ouvir, atiçando a curiosidade da vizinhança.
-... Cansei mundo ingrato, essa droga não me dá o alívio que preciso, esse efeito curto, eu tenho tudo, mas na verdade sei que não tenho nada, ninguém tem coragem de chegar perto de mim, vocês têm medo do louco do Joe, vocês são todos covardes, também foram comprados por ele, me chamam de vendida pelas costas, fazem fuxico da minha vida, mas são todos iguais, pobres, coitados, um bando de Zé povinho covarde!


Raquel desabafava suas angústias. Nunca pensei que ela fosse falar assim do Big-Joe, ele deve tê-la sacaneado muito para despertar aquela ira toda, falava sem parar, entre o choro e os soluços, como uma criança quando leva aquela surra de marcar as costas. Mas a notícia de sua loucura corria feito vento, e os informantes de Joe logo foram soprar no ouvido dele.

- Joe domina a todos. Vocês queriam um rei, eis o rei, seus miseráveis, e eu sou a vadia que aceita tudo em troca das jóias roubadas dele, e todos sabem, não é? Sabem! Condenam e nada fazem a não ser fofocas, sabem também que ele é o homem mais procurado do Brasil? Não? Não sabiam?! Ora, oras, quem poderia ter a maravilhosa idéia de roubar o Banco Central? Que caras são essas? Então não sabem do assalto mais famoso e misterioso do ano, idiotas! Foi o Joe, ele planejou tudo, e ficou com toda aquela grana também. Pouco? Vocês acham pouco? Ele é o mandante dos assassinatos de alguns donos de boca da parte baixa. É isso aí, ninguém compete com o Grande Joe...

Raíssa, uma amiga de Raquel, veio correndo e tentou se aproximar dela.
- Cala a boca Raquel, você está louca, quer morrer, é? Por que você está dizendo esse monte de loucuras?
- Não são loucuras, Big-Joe é um monstro, ele é muito mau, ahahaha, ele é um monstro!! Ela ria feito louca, e isso assustava algumas pessoas.
- Monstro ou não, demorou para você descobrir isso, depois de tudo que ele já te deu e fez por você.
-De que vale tudo aquilo? Ele me comprou sim! Eu queria ser rica, ter tudo, como uma princesa, mas agora o que sou? Graças a toda a riqueza podre, o pouco que eu tinha em casa se explodiu, foi tudo para os ares, meus pais se acabaram, por minha culpa, minha família virou um estilhaço de vidro. O Joe também é culpado, ele é o maior culpado, e eu sou uma vagabunda mesmo!

Nesse momento, as duas já estavam sentadas na calçada...
-Se ele ficar sabendo de tudo isso, ele vai te matar, amiga!
- Ele já deve saber...
Ouviu-se um tiro ensurdecedor, todos correram para ver de onde vinha, e era da casa de Raquel. Seus olhos voltaram a ficar arregalados, então...
- Paaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
Ela saiu correndo, tropeçando pela rua esburacada. O pai em desespero havia dado um tiro no ouvido. Tanta desgraça ao mesmo tempo, desilusão, cansaço, fraqueza espiritual, ele preferiu a morte a ver o final de sua única filha.

Big-Joe nunca deixou nenhuma traição barata. O que Raquel fez era o mesmo que encomendar o próprio caixão. Ela também sabia que após tudo isso não veria o Sol por muitos dias. Até pediram que ela fugisse para bem longe, talvez outro Estado, mas ela não quis, e não era porque se achava forte o suficiente, era porque suas esperanças já haviam acabado.

Raquel foi vista apenas nas duas semanas seguintes, depois sumiu do mapa. Chegaram a procurá-la, uma tia veio de longe, mas foi impossível. Delegacias, hospitais, IML. Todos tinham certeza de quem era o responsável por esse sumiço. A polícia começou as investigações, mas ninguém se atreveria a desafiá-lo.
Passaram-se três meses, houve uma denúncia anônima. O corpo de Raquel poderia ser encontrado.


Ah, leitor! Não sabes como é difícil relembrar esse dia, os rastros da morte são muito feios. A crueldade como o corpo dela foi encontrado, enterrado bem abaixo do lixão nas redondezas. Ela teve a língua cortada, foi esfaqueada, degolada, o corpo já estava em decomposição, como podem imaginar. Foi levada para o IML, para ser reconhecida pela família, e depois teve o enterro para encerrar de vez sua estadia na terra.

Essa era a lição que os poderosos tinham como costume dar a todos que cometessem o pecado da traição. Big-Joe sempre dizia que, em terra de leões, gatinho não mia. Cagüeta, traíra, língua solta, dedo-duro, como você entender melhor, tem óbito assinado à mão pelos encarregados da morte.
A lei do cão é essa, e não adianta fugir quando se está envolvido por completo. É muito difícil acreditar que tudo isso acontece assim, não é? Mais difícil ainda é sobreviver dentro dessas histórias. As pessoas são sórdidas, fingem não ver para amenizar suas dores, fingem não entender para não atormentar os pensamentos. Essa foi a história de Raquel.

Eu parei em frente ao espelho, naquele mesmo dia em que vi o caixão de Raquel descer no terrível buraco do São Luís. Ao fixar meus olhos em minha imagem ainda atordoada pelo acontecido, vi se transformar no reflexo de Raquel; sorri ao ver seus olhos brilhantes de menina mimada; verdes como esmeraldas, seu sorriso maroto de criança se tornando mulher, mas em seguida vieram as lágrimas, ao ver o mesmo rosto transfigurado, destruído pela cruel morte. (sim, eu também vi o corpo quando foi retirado do lixão) Não tinha mesmo de quem esconder as lágrimas, sozinho dentro do banheiro, e chorei muito.
Sempre soube que ela jamais seria minha, mas desejava que conseguisse ser feliz, que saísse daquela vida que levava, achasse um homem rico, como sempre sonhou, mas que quisesse seu bem, acima de tudo.

O destino traz nossa sorte, porque ninguém escolhe onde nascer, mas quem escreve a maior parte do destino somos nós mesmos. Às vezes, não nos importando com pequenos erros, provocamos erros maiores, que depois não podem ser apagados. Mais uma noite terrível foi aquela, e sua face jamais sairá de minha memória.

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